quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Suharto: a morte de um ditador

No domingo passado, foi anunciada a morte de Suharto, ex-ditador da Indonésia. 86 anos, 32 dos quais passados a infernizar a vida de milhões de pessoas na Indonésia e, sobretudo, na ex-colônia portuguesa de Timor Leste. Quando minha filha de dez anos ouviu a notícia, comentou: “Ainda bem que morreu, ao menos parou de fazer mal às pessoas”. O comentário me fez sorrir mas, ao mesmo tempo, refletir sobre a vida desta pessoa.

Suharto governou a Indonésia de 1967 a 1998, o país muçulmano mais populoso do mundo. Em troca do crescimento econômico que a Indonésia alcançou durante a sua administração, ele deixou um rastro de sangue, uma herança feita de violação dos direitos humanos, de uso do dinheiro público para o beneficio de sua própria família e seus amigos. Invadiu a ex-colônia portuguesa de Timor Leste - cuja população é de maioria católica - impondo um governo muçulmano ditatorial. Não hesitou em sufocar no sangue os movimentos nacionalistas de protesto que tentavam acabar com o regime ditatorial. Na cerimônia fúnebre de um jovem nacionalista timorense, ele ordenou às suas milícias de atacar os participantes causando mortes e feridos entre a população civil. A ONU, que na ocasião, enviou uma força internacional, acusou o ditador de genocídio.

Durante uma viagem que fiz a Macau, em 2005, também ex-colônia portuguesa, conversei com um timorense sobre os efeitos da invasão do Timor Leste por parte das tropas de Suharto. Ele contou alguns fatos sobre o abuso e humilhação que sofriam os timorenses, mas também me falou de sua coragem em enfrentá-los. Lembro de um fato: um soldado de Suharto um dia pegou uma bandeira portuguesa e ordenou a um timorense de usá-la para limpar o carro sujo de lama. O timorense, pegou a bandeira, a beijou e dobrou com cuidado. Depois, tirou a própria camisa e limpou o carro. Um fato simples que revelou a força deste povo em defender a própria nação e, também, um país que não era o dele (Portugal), mas que evidentemente contou com a simpatia dos timorenses.

Suharto deixou o poder em 1998, quando, após a crise econômica da Ásia, os numerosos movimentos nacionalistas, que surgiram no país em favor da democracia, o obrigaram à demissão.

Durante o agravar-se de sua doença, as acusações de genocídio e de corrupção foram bloqueadas. Aliás, nos últimos tempos, até os seus adversários políticos chegaram a pedir ao atual presidente indonésio de perdoar o ex-ditador, ao contrário dos ativistas populares que assim rezavam: “Pedimos pela sua recuperação para que possa se apresentar diante da lei”. O problema da impunidade sob pretexto de velhice, doença, “compaixão” pode esconder outro problema sério: o não reconhecimento público dos crimes praticados pode abrir uma brecha à repetição dos mesmos. Alguns especialistas indonésios alertam que o pedido de “compaixão”, por parte dos seus adversários políticos, esconde a existência de fortes interesses no vértice político do país. Não querer se confrontar com os crimes do passado pode ser perigoso para o futuro do país.
No caso de Hitler, por exemplo, o genocídio por ele praticado foi reconhecido por toda a humanidade como crime hediondo. E é lembrado continuamente para que não seja repetido. Mas o caso de Mao, na China, para citar outro exemplo, é diferente. O governo comunista nunca quis admitir que Mao perpetrou um genocídio ainda mais grave que o de Hitler: quase 70 milhões de chineses assassinados! É o único ditador que tem um mausoléu no centro da capital do seu país e, sobre seu mito, o governo comunista mantém ainda o monopólio.

Hoje, a Indonésia possui um governo que se diz democrático, mas continua com os mesmos problemas de 10 anos atrás, entre os quais a corrupção e, mais grave ainda, a ingerência do exército no poder político e no poder judiciária sem que nenhum órgão civil consiga controlá-lo. Esperamos que com o sepultamento de Suharto não sejam sepultadas também as lembranças dos crimes cometidos por um dos últimos ditadores do século XX.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

2008: Jogos Olímpicos em Pequim

Este ano a cidade de Pequim, capital da República Popular da China, hospedará a nova edição dos Jogos Olímpicos. A cidade está se preparando deste 2001 – ano em que o Comitê Olímpico decidiu aceitar a candidatura chinesa – para acolher este grande evento, numa atividade febril de construção de novos estádios e mudanças estruturais da mais importante cidade chinesa. Mas este grande evento, que acontece a cada quatro anos, é importante não somente pelos diferentes atletas que participarão dele, e que têm nas Olimpíadas a possibilidade do coroamento de seus esforços e treinamento, mas, também, do ponto de vista internacional, pelas relações entre os vários países do mundo que enviarão seus melhores atletas.

De fato, desde as suas origens, na antiga Grécia, os Jogos Olímpicos tinham como objetivo buscar a paz e a harmonia entre as várias cidades gregas que competiam entre elas. Com o tempo, mesmo passando por guerras mundiais e divisões políticas, os Jogos Olímpicos continuaram a simbolizar uma etapa importante de união entre os povos. A própria bandeira olímpica nos lembra o desejo de união através dos cinco anéis entrelaçados e de cores diferentes que representam os cinco continentes.

Para a República Popular da China, o fato de ter tido a própria candidatura aceita pelo Comitê Olímpico, para hospedar a maior manifestação esportiva mundial, representou um passo a mais em direção à sua aceitação e integração no cenário internacional. Naquela ocasião, em Moscou, o representante oficial das autoridades chinesas fez importantes promessas, entre as quais a de melhorar a situação dos direitos humanos no país. Assim, ele declarou: “Confiando a Pequim a organização dos Jogos Olímpicos, participareis no desenvolvimento dos direitos humanos”.

Este tema sempre foi motivo de polêmica entre a China e os seus principais parceiros econômicos. Os Estados Unidos e a União Européia, de maneira especial, em diferentes ocasiões, apresentaram suas queixas ao governo chinês reclamando da violação dos direitos humanos que ainda é praticada no país. As autoridades chinesas respondem às acusações de violação dos direitos humanos afirmando que tais acusações não possuem fundamentação pois a concepção ocidental dos direitos humanos não corresponde àquela oriental, chinesa.

As promessas feitas pelo governo chinês em 2001 em Moscou fizeram esperar que a China decidisse tomar medidas necessárias ao melhoramento da situação dos direitos humanos. É verdade que as coisas estão melhorando, a China vem mudando lentamente. As leis trabalhistas estão sendo modificadas a favor de seus trabalhadores até agora explorados por meio também da cumplicidade das multinacionais. O governo chinês está se sensibilizando quanto à questão ambiental e à renúncia do uso indiscriminado da pena de morte. As mudanças, porém, tem um limite na China: não podem atingir o poder do Partido Comunista, que permanece intocável. É neste limite que os direitos humanos perdem para as autoridades chinesas toda possibilidade de ser considerados como tais, mesmo na véspera de uma manifestação tão importante como são os Jogos Olímpicos.

O governo chinês decidira prender todos os subversivos, isto é, todos aqueles que tentam avisar a opinião pública internacional que a China não estaria respeitando as promessas feitas em 2001.
Um jornalista francês, Robert Ménard, secretário geral dos “Reporters sans frontiéres”, denunciou nestes dias a prisão de dois ativistas chineses, conhecidos internacionalmente.

O primeiro é um jovem engenheiro de 34 anos, Hu Jia. Trinta policiais à paisana entraram na sua residência e o prenderam, após terem bloqueadas as linhas telefônicas e a conexão Internet de Hu Jia. Após a prisão, a esposa dele com a filhinha de dois meses, foram mantidas sob vigilância. Os jornalistas e a diplomacia estrangeira os conheciam pela sua atividade em favor da luta pela liberdade de expressão. Hu Jia e sua esposa estavam felizes pela realização dos Jogos Olímpicos na China, pois acreditavam que seria uma ocasião propícia de crescimento para o país. Além de Hu Jia, foi preso também Wang Deqia, acusado de ter publicado na Internet um artigo com o seguinte título: “Estes Jogos Olímpicos algemados trarão somente sofrimento à população”.
A prisão destas pessoas, deveria, segundo o jornalista francês, despertar a indignação do Comitê Olímpico que, ao contrário, parece permanecer em silêncio, indiferente a estes pedidos de ajuda.

O governo chinês parece ter esquecido as promessas feitas, aliás, decidiu reforçar a sua defesa contra os eventuais ataques nacionais e internacionais. As autoridades, de fato, decidiram fichar todos os jornalistas estrangeiros e criar uma lista negra dos defensores estrangeiros dos direitos humanos.

Construir novos estádios e embelezar a cidade, não significa, portanto, renunciar à linha dura. Ao longo da história deste país, nos momentos de grande abertura ao exterior, o governo sempre reforçou suas defesas para não permitir que tal abertura se transformasse em ocasião para seus habitantes mostrarem o verdadeiro vulto do país, suas divisões internas, não somente entre a população e o governo, mas dentro do próprio governo.

Lembramos aqui os fatos de Tiananmen (1989) ocorridos em ocasião da visita do presidente soviético Gorbachev, quando a União Soviética estava abrindo-se à democracia e ao capitalismo. Talvez a China tema que os Jogos Olímpicos possam se transformar em uma segunda Tiananmen. Desta vez, porém, o Partido Comunista da China certamente não sobreviveria a um segundo massacre.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Loppiano: cidade da fraternidade

Durante a minha viagem, pude fazer passeios em algumas das cidades mais graciosas da Itália. Nelas, havia sempre alguma igreja importante, ou era a cidade natal de algum santo: como Cassia, a cidade de Santa Rita; Assis, de São Francisco; Norcia, de São Bento; Pietralcina, de Padre Pio. São lugares sugestivos e que oferecem alguma mensagem preciosa, um modelo de vida diferente. Mas devo dizer que o que mais me impressionou nestas breves viagens foi a visita a um lugar diferente, uma pequena cidadezinha localizada nos arredores de Florença, no meio das colinas toscanas. Esta localidade recebeu o nome de Loppiano, pelas árvores “Loppi”, que caracterizam o seu território. Ela não possui nenhum dos belíssimos e antigos monumentos que fizeram de Florença uma das cidades mais bonitas do mundo. Mesmo assim, Loppiano atrai milhares de visitantes da Itália, Europa e, também, de outros continentes. Fundada nos anos 60 nas terras que um jovem descendente de uma famosa família de produtores de vinho doou para a sua construção. Quem teve a idéia da construção desta cidade foi Chiara Lubich, a fundadora de um novo movimento católico nascido na Itália, mas que se expandiu logo no mundo inteiro. O que carateriza esta localidade vem logo à tona nos primeiros momentos de visita: a internacionalidade e a fraternidade! Assim que cheguei lá, as primeiras pessoas que vi foram de uma família de orientais que entraram no pequeno supermercado da cidade. Na lanchonete, onde fui tomar um cafezinho, atrás do balcão estava uma brasileira de Londrina junto com uma moça da Colômbia. Na livraria ao lado, estava um africano. Após alguns momentos, passou por mim um grupo da Hungria, que estava visitando a cidade. Em suma, em poucos minutos, havia encontrado pessoas de vários continentes. Após o café, veio ao meu encontro um sorridente senhor, que logo descobri ser um brasileiro originaário de Pernambuco. Ele havia passado 18 anos no sudeste asiático, responsável pela difusão do espírito de Loppiano em vários países daquela regiao: Tailandia, Birmania, Vietnam, Laos, etc. Atualmente, encontrava-se em Loppiano por motivos de estudo. Foi ele quem me acompanhou na descoberta desta pequena localidade, descrevendo-me suas características principais. Loppiano tem cerca de 800 habitantes de 70 nacionalidades, na maioria jovens que escolhem passar cerca de dois anos. É uma espécie de centro de formação para aprender a viver a cultura da fraternidade e podê-la levar nos próprios países de origem ou em outras naçoes. Ao lado destes jovens, vivem estavelmente cerca de 70 famílias de diferentes nacionalidades, que decidiram fixar a própria residência nesta localidade. Vivem também em Loppiano numerosos empresários que estabeleceram ali a própria empresa, assim como alguns artistas, escultores, pintores e músicos que querem fazer de sua arte um instrumento de difusão deste espírito de fraternidade. A arquitetura do lugar é caraterizada pelas casas típicas da região toscana, onde encontram hospitalidade também os que vem passar em Loppiano apenas um fim de semana ou alguns meses. Para a cidade se auto-sustentar, foram criadas pequenas empresas onde trabalham os habitantes fixos e temporaários de Loppiano. Empresas de produção do famoso vinho da região, o Chianti, empresas de artesanato em madeira, de moda, de produtos para bebês, etc. Nivaldo, o pernambucano que me guiou neste passeio tão peculiar, dizia-se que a vida da cidade baseava-se em uma única lei, a Regra de Ouro comum a várias religiões: “Faz aos outros aquilo que tu gostarias que eles fizessem a ti”, tentando atuar em cada relação o princípio da reciprocidade e da fraternidade entre pessoas de diferentes nações. Mesmo a cidade tendo as suas raízes em um movimento católico (o Movimento dos Focolares), ela recebe, justamente pela relevância dada à Regra de Ouro, pessoas de outras denominações cristãs e de outras religiões, como também pessoas que não possuem nenhuma convicção religiosa, mas que compartilham o mesmo desejo de atuar uma cultura mais fraterna. Passei somente um dia ali, mas conversei com várias pessoas que me contaram suas vivências, suas dificuldades e suas alegrias nesta cidadezinha tão fascinante. Posso definir Loppiano como um laboratorio onde se experimenta o princípio ativo de uma nova cultura, a cultura da fraternidade entre pessoas de diferentes nacionalidades. Após o período de formaçao, cada um destes jovens parte para o seu pedaço de mundo para levar este princípio ativo já brevetado, e fazê-lo conhecer nos seus lugares de destino. Saí de lá com o mesmo desejo.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Itália: gente que vem, gente que vai

Há algumas semanas, encontro-me em uma pequena cidadezinha no interior da Itália. Cidade antiga, de quase dez mil habitantes com origens no Império Romano. Há pouco tempo descobriram, escavando em uma das ruas principais, trechos de uma estrada percorrida pelos romanos. Era o meu lugar de veraneio preferido durante minha infância e adolescência, terra de origem de minha mãe, e cidade onde escolhi casar. Nota-se, falando com seus habitantes, o orgulho de pertencer a uma cidade tão rica de história e tradições. Voltando aqui, após muitos anos de ausência, percebi algo diferente na cidade: nas lojas, nas ruas notei sotaques diferentes, principalmente de línguas eslavas. Conversando com as pessoas do lugar, eles sublinhavam que Amélia - este é o nome da cidadezinha - há alguns anos está recebendo imigrantes que escolheram a Itália para tentar uma vida melhor. Há décadas, as grandes cidades, como Roma, Milão, Florença, Turim, já de tradição cosmopolita, acolhem pessoas do mundo inteiro, mas nesses dias percebi que até as pequenas cidades do interior não escaparam aos olhos dos imigrantes. E como a Itália está reagindo a estas ondas de imigração proveniente principalmente dos países da África do Norte e do Leste Europeu? A reação dos italianos é muito variada. Há uma minoria que, se pudesse, fecharia literalmente as fronteiras italianas para barrar este fluxo contínuo de imigrantes. Felizmente, somente uma pequena parte da população italiana foi afetada por esta onda xenófoba. Os demais reclamam, sobretudo da falta de uma regulamentação da entrada dos imigrantes por parte do estado. Ninguém quer fechar as portas a pessoas que querem melhorar a própria situação trabalhando honestamente. O medo surge diante de pessoas que tentam ganhar a vida por meio do crime. Muitos fatos de crônica policial envolvem atualmente imigrantes, mesmo se não exclusivamente, e isto não favorece a sua aceitação, aumentando a desconfiança. Mas, daquilo que pude perceber, a Itália sempre manteve as portas abertas às necessidades das populações vizinhas. São muitos os centros de acolhida ao longo do litoral sul da Itália, assim como os tantos voluntários que ali trabalham ajudando os emigrantes que chegam na Itália, às vezes em condições miseráveis, superlotando barcos que transportam ilegalmente na escuridão das noites inteiras famílias que arriscam tudo em busca de um sonho. A maioria destes emigrantes consegue, com dificuldades, inserir-se na sociedade italiana. Muitos encontram emprego nas lavouras, nas colheitas de estação - as mulheres são muitas vezes empregadas como acompanhantes de pessoas idosas, que, devido ao baixo índice de natalidade do país, superam o número de crianças e jovens. As crianças são inseridas nas salas de aula, que se tornaram, nos últimos anos, sempre mais multirraciais. Lembro-me da primeira vez que veio na nossa sala uma menina africana. Foi um verdadeiro evento e lhe fizemos inúmeras perguntas. Queríamos saber tudo sobre ela, come se tivesse chegado de outro planeta. Hoje, as crianças italianas já estão acostumadas ao convívio com estrangeiros dentro do prédio ou na própria escola e aprendem que existem culturas com valores completamente diferentes dos seus, como é o caso das tradições muçulmanas, dos imigrantes norte-africanos. Refletindo sobre essas mudanças a partir da pequena e linda cidade onde estou agora, o meu pensamento voltou ao Brasil, onde moro há 11 anos. E logo percebi que o povo maravilhoso que se encontra no Brasil é o resultado da união de diferentes raças e culturas. O nosso próprio estado de Santa Catarina é exemplo típico da troca cultural entre italianos, alemães, portugueses, índios que deram vida a uma cultura riquíssima. Certamente, foi essa diversidade que tornou o povo brasileiro um dos mais amados no mundo. A Itália, que no século 19, pelas difíceis condições econômicas nas quais vivia, teve que encorajar a partida de milhares de filhos seus para o mundo, hoje transformou-se, junto com outros países da Europa, em um país receptor de imigrantes. Na Itália, as dificuldades de convivência são muitas, mas, talvez, se ela conhecesse melhor a experiência do Brasil, poderia ter a esperança que essas dificuldades seriam somente as sementes de uma nova cultura, de um novo povo mais rico e feliz.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

A difícil situação dos católicos na China

Quem nunca ouviu falar do crescimento econômico sem igual da China? Quantas vezes já escutamos a notícia de delegações do governo federal brasileiro, ou dos nossos estados, realizando visitas à China, fechando acordos ou tentando se proteger da invasão dos produtos chineses? Se já adquirimos noções da economia deste gigante asiático, talvez ainda nos falte conhecer o que acontece com a religião e a difícil situação que os católicos chineses ainda hoje enfrentam na China.

A história do cristianismo na China tem raízes distantes, começando já no longínquo ano de 635 d.C. A Igreja Católica na China passou por longos períodos de perseguição e de tolerância devido às mudanças das várias dinastias imperiais. Graças também à obra de numerosas congregações religiosas - dentre outras os franciscanos, os jesuítas e os vicentinos - a Igreja Católica conseguiu reforçar e difundir a sua presença no país.

A Santa Sé estabeleceu relações diplomáticas com a República da China, então governada pelo Partido Nacionalista, somente em 1942 e por poucos anos. De fato, em 1951, a ditadura comunista, instaurada por Mao Zedong, marcou o fim destas relações, atitude esta que causou a expulsão em massa de todos os estrangeiros, inclusive missionários e religiosos que há anos trabalhavam na China. À expulsão dos missionários estrangeiros seguiu a perseguição dos bispos, padres, religiosos e religiosas chineses. As igrejas foram fechadas ao culto e as propriedades católicas expropriadas pelo governo chinês. O Vaticano foi considerado pelos comunistas como uma potência estrangeira qualquer que, ao lado das outras potências ocidentais, era acusado de ter explorado e escravizado o povo chinês durante décadas.

A China adotou uma política de reabertura ao resto do mundo, a modernização tomou conta de todos os setores do país. As comunidades religiosas também se beneficiaram desta abertura, mas tiveram que aceitar as condições oferecidas pelo governo. Deng Xiaoping queria demonstrar ser capaz de dar espaço a todos, inclusive às comunidades religiosas, desde que estas aceitassem formar junto com o governo chinês uma Frente Unida para trabalhar pela construção de uma nova China.

Nem todos os católicos, porém, confiaram em tal demonstração de tolerância. Era de fato uma liberdade religiosa que não deixava espaço a qualquer tipo de divergência e que mantinha sob controle todas as tentativas de comunicação com o Vaticano, considerado ainda como um elemento perigoso para a independência chinesa. Organismos governamentais receberam do governo a tarefa de administrar os assuntos religiosos, que incluía a intervenção na nomeação dos bispos católicos chineses, pois o governo chinês julgava inadmissível que o chefe político de outro Estado, como era considerado o Papa, pudesse nomear os administradores de comunidades católicas chinesas (os bispos). A questão da nomeação sempre foi um dos pontos-chave das complicadas relações entre a Santa Sé e o governo chinês gerando não poucos problemas para a comunidade católica chinesa.

Ao longo de décadas, acabaram se formando na China três grupos de bispos. O primeiro formado por uma minoria que, sob convite do governo comunista havia aceitado cortar completamente as relações com o Papa, e queria formar uma Igreja Católica independente. O segundo grupo, majoritário, era formado por bispos que haviam escolhido permanecer ao lado do governo chinês no intuito de salvar como podiam as sementes do catolicismo na China. Muitos destes bispos, nomeados sem a aprovação do Vaticano, procuravam secretamente, após sua consagração episcopal, o consentimento do Papa restabelecendo, em segredo, a comunhão com ele. O terceiro grupo era constituído por aqueles bispos que escolheram a clandestinidade por não se submeterem ao controle do governo comunista. Muitos deles foram torturados e jogados na cadeia, onde passaram mais de vinte anos. Estes grupos eram seguidos por milhares de católicos, também divididos entre eles.

Todos os papas, de Pio XII a João Paulo II, tentaram manter o diálogo não somente com as autoridades chinesas, mas, também, com as diversas comunidades da Igreja Católica na China. Cartas, orientações, diretrizes foram enviadas às comunidades chinesas. Algumas destas diretrizes vaticanas, que queriam ajudar a Igreja Católica a não sucumbir sob o controle total por parte do governo chinês, demonstraram-se, porém, como facas de dois gumes.

Em 1978, por exemplo, a Santa Sé emitiu um documento que concedia poderes especiais aos bispos e ao clero católico reduzindo ao mínimo as obrigações formais. Com base em tal documento os bispos poderiam ordenar sacerdotes homens católicos de conhecida e comprovada virtude mesmo que não tivessem recebido uma educação teológica formal. A este documento, poucos anos depois, se acrescentou a decisão de João Paulo II de permitir que os bispos clandestinos pudessem consagrar outros bispos mesmo quando, por razões de segurança, não conseguissem obter a aprovação da Santa Sé. A partir daí as ordenações de padres clandestinos sem a devida formação teológica e a consagração de bispos católicos clandestinos cresceram vertiginosamente reforçando as fileiras da comunidade católica clandestina que, sentindo-se mais forte, passou a combater e, muitas vezes, também a difamar as comunidades católicas “oficiais”, definindo-as como ninho de pecadores. O governo comunista, diante de tal situação, emitiu vários documentos oficiais para tentar derrotar as comunidades clandestinas consideradas como infiltração do Vaticano na China.

Até a sua morte, em 2005, o papa João Paulo II tentou dialogar com as autoridades chinesas, com os bispos, com os católicos chineses para que todos trabalhassem por uma reconciliação. Durante os 26 anos de seu pontificado ele dirigiu-se à China 60 vezes, entre discursos oficiais, mensagens e saudações.

Bento XVI seguiu os passos do seu predecessor e há pouco tempo escreveu a sua primeira carta aos católicos chineses. Com a delicadeza e a extraordinária inteligência que o caracterizam ele conseguiu dirigir-se aos seus interlocutores como se cada um fosse o único, convidando todos os católicos para trabalhar pela unidade da comunidade católica na China. Na carta ofereceu orientações precisas, não deixando espaço a dúvidas ou divisões, contribuindo para aquietar os ânimos e colocar as bases para uma futura reconciliação entre os católicos das comunidades oficiais e clandestinas. As dificuldades ainda permanecem, mas alguns sinais - como a recente consagração episcopal do novo bispo de Pequim, realizada com a aprovação conjunta do governo e da Santa Sé - parecem confirmar o desejo de Bento XVI de uma normalização das relações entre os católicos e da Santa Sé com o governo de Pequim.

sábado, 5 de janeiro de 2008

O mundo, nossa casa

Desde pequena, convivi com pessoas de países diferentes do meu. Nasci em Roma, na Itália, e lembro das vezes que, ainda criança, pegava o ônibus com a minha mãe. Todas as vezes, em uma determinada parada, o ônibus lotava de padres e religiosas que falavam línguas estranhas para mim. Ficava encantada olhando aqueles rostos diferentes, de pele morena, ou de olhos puxados. Para não falar dos turistas estrangeiros, que no trajeto do Vaticano até a Estação Central de Trem, onde estava minha escola, ocupavam tanto o ônibus que, às vezes, eu e minhas colegas descíamos antes da parada e caminhávamos até o nosso colégio.

Roma é, por excelência, uma cidade internacional e foi, talvez, por esta sua influência que não tive dúvidas em decidir por estudar línguas estrangeiras já a partir do ensino médio. Não sabia ainda que profissão escolheria no futuro, mas me parecia que, estudando os vários idiomas, conseguiria abater ao menos as barreiras lingüísticas que me separavam dos povos vizinhos. Estudei, então, inglês, francês e alemão. Lembro-me de uma noite em que, sentados em uma pizzaria, eu e os meus amigos percebemos que éramos em dez pessoas, mas de sete idiomas diferentes, e que, para podermos ter uma conversa legal, teríamos que escolher qual seria o idioma comum. Naquela noite, venceu o francês.

O contato constante com pessoas de países diferentes despertou em mim a curiosidade não somente de conhecer a língua do país, mas sua história, sua cultura, suas tradições, percebendo que, na maioria das vezes, o que nos parece tão distante e diferente, na realidade, é muito próximo e similar às realidades do nosso cotidiano. Comparando o meu dia-a-dia àquele dos tantos estrangeiros que encontrei ao longo destes anos, aprendi a valorizar coisas que antes menosprezava e, ao mesmo tempo, a não dar valor demais a coisas que antes me pareciam indispensáveis.

Um dia, quando já estava na universidade, visitando um amigo nas proximidades de Roma, conheci um rapaz chinês que me contou sua história. Ele fora membro da Companhia de Balé de Pequim, do Exército Vermelho da República Popular da China. Dançava desde criança. Em uma das turnês que a sua companhia fizera na Europa, ele decidiu fugir. Não agüentou a falta de liberdade em seu país. Foi acolhido em um centro de refugiados de uma cidade do litoral romano. Quando lá chegou, ele só sabia expressar-se em chinês. Nem inglês conhecia.

Ninguém o entendia, mas, lentamente, com a ajuda dos jovens do lugar, após meses de silêncio forçado, aprendeu a se comunicar em italiano. Quando o conheci, ele estava esperando o visto para se mudar definitivamente para o Canadá. Contei-lhe que eu havia recém começado a estudar chinês na universidade, e ele quis me recitar um antigo poema chinês sobre o amor pelo próprio país e a dor de ser obrigado a nunca mais voltar.

Descobri, talvez pela primeira vez, de maneira tão profunda, o valor inestimável da liberdade e conheci a dor de uma porção enorme da humanidade, representada naquele jovem chinês, que vivia sob um regime ditatorial. Aprendi que a nossa vida não acaba nos confins do nosso país, da nossa cidade, mas que é estritamente ligada à vida de toda a humanidade, distribuída nos mais de 200 países que formam o nosso mundo. ‘Nosso Mundo’ escolherá fatos internacionais para serem compreendidos sob a ótica do que chamo de paradigma da unidade que, em poucas palavras, significa ver o mundo pelo que ele é: casa da humanidade; e não pelo que ele não é: campo de batalhas políticas, econômicas, religiosas.