quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Matteo Ricci, os Jesuítas e a Questão dos Ritos (parte 2)

A chegada de Matteo Ricci, em 1582, marcou uma verdadeira revolução quanto ao método de aproximação ao povo chinês. Em Macau, por exemplo, naquele período, os chineses convertidos eram obrigados a escolher nomes portugueses, vestir roupas portuguesas e adotar os costumes de Portugal. Matteo Ricci mergulhou diretamente no estudo da língua chinesa, ao contrário de outros missionários, que usavam, até então, o método de assimilação cultural dos povos evangelizados. Antes de entrar em Pequim, passou muitos anos no interior da China, aprofundando o estudo da língua, das tradições locais, vestindo o hábito confuciano e fazendo-se “chinês com os chineses”.

Mudou o seu nome para Li Madou. Inculturou-se. Valorizou os costumes, a cultura, os valores e as tradições chinesas, evidenciando o que mais os aproximava. Humanista, Matteo Ricci conseguiu abrir um diálogo entre duas civilizações, oferecendo os seus conhecimentos de letrado e matemático. Escreveu e traduziu numerosas obras em língua chinesa. Quando morreu, em 1610, o imperador Wanli concedeu um terreno para a sua sepultura. Esta foi a primeira vez em toda a história da China que a um estrangeiro foi permitido o sepultamento na capital do império.

O período que seguiu a morte de Ricci foi menos feliz. Os missionários encontraram diversos obstáculos em seu caminho. Além das perseguições periódicas, mais nocivas aos objetivos da evangelização foram as rivalidades entre as próprias ordens religiosas, principalmente entre os franciscanos e os jesuítas.

Com a queda da dinastia Ming, derrotada em 1644, e o advento da dinastia Qing, o cristianismo encontrou no imperador Kangxi um importante aliado. Com um decreto de 1692, Kangxi elogiou os missionários europeus, agradecendo-os pelos seus serviços e definindo-os homens de paz. Neste mesmo documento, ele comunicava a sua decisão de salvaguardar todos os templos dedicados ao Senhor do Céu (Tianzhu), o Deus dos cristãos, e de autorizar todos aqueles que queriam adorar este Deus a participar das cerimônias que os cristãos celebravam.

Este decreto fazia parte de uma tentativa de reformas que aproximariam a China do Ocidente, em busca da modernização do império chinês.
Infelizmente, a Questão dos Ritos rompeu esta feliz amizade entre os representantes da igreja católica e a corte chinesa.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Matteo Ricci, os Jesuítas e a Questão dos Ritos (parte 1)

No ano de 2010, será celebrado o quarto centenário da morte de Matteo Ricci, jesuíta italiano que viajou para China e ali revolucionou os métodos de evangelização usados até então. Mestre do diálogo, conseguiu, de fato, estabelecer relações de amizade e confiança com o imperador e o povo chinês, atuando o que chamamos hoje de inculturação, da mensagem evangélica, na cultura chinesa. Tal sucesso, porém, provocou a revolta dos outros missionários que, provavelmente por inveja, denunciaram, à Santa Sé, os métodos de Matteo Ricci considerados por tais opositores como quase heréticos. Surgiu, assim, a conhecida Questão dos Ritos, que comprometeu o diálogo entre a igreja católica e o mundo chinês.

Os missionários jesuítas chegaram no Oriente levados por navios portugueses, na dupla veste de enviados da Coroa e núncios do papa. Havia na época o sistema do padroado por parte dos reis de Portugal e Espanha que possuíam todos os direitos sobre as missões, inclusive o de nomear bispos e erigir dioceses.
Em veste de enviado pontifício e vigário-geral da Companhia de Jesus, chegou em Macau, em 1578, o missionário Alessandro Valignano, que recolheu o legado deixado por Francisco Xavier, morto às portas chinesas em 1552. Valignano procurou mudar o estilo coercitivo de evangelização adotado pelos missionários da época e tentou livrar-se do poder político que acompanhava os padroados.

Naquele período, a igreja católica começava a perceber que a estreita ligação entre a evangelização e os padroados não era benéfica à evangelização na Ásia. Por meio da criação de Propaganda Fide, a Santa Sé tentou separar as competências de um e de outro. Os primeiros jesuítas, como Valignano, Ruggieri e, em seguida, Matteo Ricci, adotaram as novas diretrizes de aprender antes de tudo a língua e os costumes chineses.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

A mediação da Santa Sé no conflito Argentina-Chile

No último sábado, dia 28 de novembro, o papa Bento XVI recebeu no Vaticano a visita de Cristina Fernández de Kirchner e Michelle Bachelet, respectivamente presidentes da Argentina e do Chile. O motivo da visita era celebrar os 25 anos do Tratado de Paz e Amizade assinado pelos dois países no dia 29 de novembro de 1984 no Palácio Apostólico do Vaticano, graças à mediação da Santa Sé, e que salvou os dois países de um conflito que parecia inevitável.

As causas da disputa envolviam a soberania das ilhas Picton, Lennox e Nueva, localizadas entre a entrada do Canal do Beagle e o Cabo Horn na ponta da Terra do Fogo. O litígio era antigo, remontava ao século XIX, no período em que Argentina e Chile estavam ainda definindo suas fronteiras. Entre 1822 e 1833, o Chile estabeleceu como seu limite o Cabo Horn. Com o tempo, porém, tentou ampliar um pouco mais seu espaço de navegação na região do Estreito de Magalhães. As tratativas de definição de fronteiras estenderam-se por mais de um século, ora com tratados de paz, ora com pedidos de revisão e crises diplomáticas. Em 1959, uma nova crise obrigou os dois países a se comprometerem na busca de uma solução por meio da arbitragem.

Em 1977, a Rainha Elizabeth II, da Grã-Bretanha, nomeada árbitro da disputa, decidiu que a posse das três ilhas disputadas ficaria com o Chile. A Argentina, por sua vez, ficaria com a Ilha Becasse, ao lado da ilha Picton, e com a livre navegação para o acesso a Ushuaia, a cidade mais austral do mundo, capital da região da Terra do Fogo. A Argentina não ficou satisfeita. Em 1978, ano da vitória da Seleção Argentina na Copa do Mundo, o governo dos militares, decidiu reabrir a disputa com o Chile, talvez na tentativa de reforçar o sentimento nacionalista enfraquecido sob os golpes da ditadura militar. Na época, o Chile também era governado por um ditador militar, Augusto Pinochet.

Os ânimos começaram a esquentar, e os dois governos preparavam já seus exércitos. Em 21 de dezembro de 1978, Pinochet avisou os Estados Unidos da iminência do conflito militar. A Argentina marcou o início do bombardeio e a invasão do Chile para as 22 horas do dia seguinte. O conflito era tido como inevitável. Mas apenas três horas antes do início do conflito, a Junta Militar da Argentina decidiu aceitar a mediação da Santa Sé, que havia sido interpelada pelo próprio presidente argentino, General Videla.

O então João Paulo II, recém eleito, enviou o Cardeal Antonio Samoré para que ajudasse os dois governos a encontrar uma solução pacífica para o conflito. No dia 8 de janeiro de 1979, os chanceleres da Argentina e Chile assinaram a Ata de Montevidéu, com a qual se comprometeram em aceitar a mediação do Vaticano. Em 1980, o papa João Paulo II propôs que o governo argentino reconhecesse a soberania do Chile sobre as três ilhas do Canal de Beagle. A Argentina recusou tal proposta.

Somente em 1984, quando, na Argentina, voltou a democracia, um plebiscito aprovou, com 80% dos votos, a proposta da Santa Sé. Chegou-se, finalmente, à assinatura do Tratado de Paz e Amizade que terminou com uma disputa de mais de um século e que livrou os dois países de um conflito que teria custado a vida de milhares de pessoas.

No último sábado, o papa Bento XVI, encontrando as delegações dos dois países, lembrou com satisfação como “aquele histórico evento contribuiu beneficamente para reforçar em ambos os Países os sentimentos de fraternidade, como também uma mais decidida cooperação e integração (...). O evento que hoje comemoramos faz já parte da grande história de duas nobres Nações, mas também de toda a América Latina. O Tratado de Paz e Amizade é um exemplo luminoso da força do espírito humano e da vontade de paz diante das barbáries e da absurdidade da violência e da guerra como meio de resolver as divergências”.

Bento XVI lembrou as palavras do papa Pio XII que, na véspera da eclosão da II Guerra Mundial, pronunciou, numa mensagem radiofônica, a célebre frase: “Nada é perdido com a paz. Tudo pode ser perdido com a guerra”. Com isso, Bento XVI quis sublinhar a importância de se tentar resolver as controvérsias por meio do diálogo, mediante pacientes negociações, levando em conta “as justas exigências e os legítimos interesse de todos”.

A celebração, no Vaticano, desse Tratado de Paz foi, certamente, relevante, por se tratar do reconhecimento oficial, por parte de dois Estados, da capacidade de mediação internacional da Santa Sé. O caminho do diálogo e da negociação deu certo. A presidente argentina, no seu discurso, reconhecendo que, graças à mediação do papa João Paulo II e de seu representante, o Cardeal Samoré, a guerra foi evitada, concluiu: “Quem é um mediador? É alguém que não está nem de um lado nem de outro. Está pela paz”.