quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Matteo Ricci, os Jesuítas e a Questão dos Ritos (parte 2)

A chegada de Matteo Ricci, em 1582, marcou uma verdadeira revolução quanto ao método de aproximação ao povo chinês. Em Macau, por exemplo, naquele período, os chineses convertidos eram obrigados a escolher nomes portugueses, vestir roupas portuguesas e adotar os costumes de Portugal. Matteo Ricci mergulhou diretamente no estudo da língua chinesa, ao contrário de outros missionários, que usavam, até então, o método de assimilação cultural dos povos evangelizados. Antes de entrar em Pequim, passou muitos anos no interior da China, aprofundando o estudo da língua, das tradições locais, vestindo o hábito confuciano e fazendo-se “chinês com os chineses”.

Mudou o seu nome para Li Madou. Inculturou-se. Valorizou os costumes, a cultura, os valores e as tradições chinesas, evidenciando o que mais os aproximava. Humanista, Matteo Ricci conseguiu abrir um diálogo entre duas civilizações, oferecendo os seus conhecimentos de letrado e matemático. Escreveu e traduziu numerosas obras em língua chinesa. Quando morreu, em 1610, o imperador Wanli concedeu um terreno para a sua sepultura. Esta foi a primeira vez em toda a história da China que a um estrangeiro foi permitido o sepultamento na capital do império.

O período que seguiu a morte de Ricci foi menos feliz. Os missionários encontraram diversos obstáculos em seu caminho. Além das perseguições periódicas, mais nocivas aos objetivos da evangelização foram as rivalidades entre as próprias ordens religiosas, principalmente entre os franciscanos e os jesuítas.

Com a queda da dinastia Ming, derrotada em 1644, e o advento da dinastia Qing, o cristianismo encontrou no imperador Kangxi um importante aliado. Com um decreto de 1692, Kangxi elogiou os missionários europeus, agradecendo-os pelos seus serviços e definindo-os homens de paz. Neste mesmo documento, ele comunicava a sua decisão de salvaguardar todos os templos dedicados ao Senhor do Céu (Tianzhu), o Deus dos cristãos, e de autorizar todos aqueles que queriam adorar este Deus a participar das cerimônias que os cristãos celebravam.

Este decreto fazia parte de uma tentativa de reformas que aproximariam a China do Ocidente, em busca da modernização do império chinês.
Infelizmente, a Questão dos Ritos rompeu esta feliz amizade entre os representantes da igreja católica e a corte chinesa.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Matteo Ricci, os Jesuítas e a Questão dos Ritos (parte 1)

No ano de 2010, será celebrado o quarto centenário da morte de Matteo Ricci, jesuíta italiano que viajou para China e ali revolucionou os métodos de evangelização usados até então. Mestre do diálogo, conseguiu, de fato, estabelecer relações de amizade e confiança com o imperador e o povo chinês, atuando o que chamamos hoje de inculturação, da mensagem evangélica, na cultura chinesa. Tal sucesso, porém, provocou a revolta dos outros missionários que, provavelmente por inveja, denunciaram, à Santa Sé, os métodos de Matteo Ricci considerados por tais opositores como quase heréticos. Surgiu, assim, a conhecida Questão dos Ritos, que comprometeu o diálogo entre a igreja católica e o mundo chinês.

Os missionários jesuítas chegaram no Oriente levados por navios portugueses, na dupla veste de enviados da Coroa e núncios do papa. Havia na época o sistema do padroado por parte dos reis de Portugal e Espanha que possuíam todos os direitos sobre as missões, inclusive o de nomear bispos e erigir dioceses.
Em veste de enviado pontifício e vigário-geral da Companhia de Jesus, chegou em Macau, em 1578, o missionário Alessandro Valignano, que recolheu o legado deixado por Francisco Xavier, morto às portas chinesas em 1552. Valignano procurou mudar o estilo coercitivo de evangelização adotado pelos missionários da época e tentou livrar-se do poder político que acompanhava os padroados.

Naquele período, a igreja católica começava a perceber que a estreita ligação entre a evangelização e os padroados não era benéfica à evangelização na Ásia. Por meio da criação de Propaganda Fide, a Santa Sé tentou separar as competências de um e de outro. Os primeiros jesuítas, como Valignano, Ruggieri e, em seguida, Matteo Ricci, adotaram as novas diretrizes de aprender antes de tudo a língua e os costumes chineses.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

A mediação da Santa Sé no conflito Argentina-Chile

No último sábado, dia 28 de novembro, o papa Bento XVI recebeu no Vaticano a visita de Cristina Fernández de Kirchner e Michelle Bachelet, respectivamente presidentes da Argentina e do Chile. O motivo da visita era celebrar os 25 anos do Tratado de Paz e Amizade assinado pelos dois países no dia 29 de novembro de 1984 no Palácio Apostólico do Vaticano, graças à mediação da Santa Sé, e que salvou os dois países de um conflito que parecia inevitável.

As causas da disputa envolviam a soberania das ilhas Picton, Lennox e Nueva, localizadas entre a entrada do Canal do Beagle e o Cabo Horn na ponta da Terra do Fogo. O litígio era antigo, remontava ao século XIX, no período em que Argentina e Chile estavam ainda definindo suas fronteiras. Entre 1822 e 1833, o Chile estabeleceu como seu limite o Cabo Horn. Com o tempo, porém, tentou ampliar um pouco mais seu espaço de navegação na região do Estreito de Magalhães. As tratativas de definição de fronteiras estenderam-se por mais de um século, ora com tratados de paz, ora com pedidos de revisão e crises diplomáticas. Em 1959, uma nova crise obrigou os dois países a se comprometerem na busca de uma solução por meio da arbitragem.

Em 1977, a Rainha Elizabeth II, da Grã-Bretanha, nomeada árbitro da disputa, decidiu que a posse das três ilhas disputadas ficaria com o Chile. A Argentina, por sua vez, ficaria com a Ilha Becasse, ao lado da ilha Picton, e com a livre navegação para o acesso a Ushuaia, a cidade mais austral do mundo, capital da região da Terra do Fogo. A Argentina não ficou satisfeita. Em 1978, ano da vitória da Seleção Argentina na Copa do Mundo, o governo dos militares, decidiu reabrir a disputa com o Chile, talvez na tentativa de reforçar o sentimento nacionalista enfraquecido sob os golpes da ditadura militar. Na época, o Chile também era governado por um ditador militar, Augusto Pinochet.

Os ânimos começaram a esquentar, e os dois governos preparavam já seus exércitos. Em 21 de dezembro de 1978, Pinochet avisou os Estados Unidos da iminência do conflito militar. A Argentina marcou o início do bombardeio e a invasão do Chile para as 22 horas do dia seguinte. O conflito era tido como inevitável. Mas apenas três horas antes do início do conflito, a Junta Militar da Argentina decidiu aceitar a mediação da Santa Sé, que havia sido interpelada pelo próprio presidente argentino, General Videla.

O então João Paulo II, recém eleito, enviou o Cardeal Antonio Samoré para que ajudasse os dois governos a encontrar uma solução pacífica para o conflito. No dia 8 de janeiro de 1979, os chanceleres da Argentina e Chile assinaram a Ata de Montevidéu, com a qual se comprometeram em aceitar a mediação do Vaticano. Em 1980, o papa João Paulo II propôs que o governo argentino reconhecesse a soberania do Chile sobre as três ilhas do Canal de Beagle. A Argentina recusou tal proposta.

Somente em 1984, quando, na Argentina, voltou a democracia, um plebiscito aprovou, com 80% dos votos, a proposta da Santa Sé. Chegou-se, finalmente, à assinatura do Tratado de Paz e Amizade que terminou com uma disputa de mais de um século e que livrou os dois países de um conflito que teria custado a vida de milhares de pessoas.

No último sábado, o papa Bento XVI, encontrando as delegações dos dois países, lembrou com satisfação como “aquele histórico evento contribuiu beneficamente para reforçar em ambos os Países os sentimentos de fraternidade, como também uma mais decidida cooperação e integração (...). O evento que hoje comemoramos faz já parte da grande história de duas nobres Nações, mas também de toda a América Latina. O Tratado de Paz e Amizade é um exemplo luminoso da força do espírito humano e da vontade de paz diante das barbáries e da absurdidade da violência e da guerra como meio de resolver as divergências”.

Bento XVI lembrou as palavras do papa Pio XII que, na véspera da eclosão da II Guerra Mundial, pronunciou, numa mensagem radiofônica, a célebre frase: “Nada é perdido com a paz. Tudo pode ser perdido com a guerra”. Com isso, Bento XVI quis sublinhar a importância de se tentar resolver as controvérsias por meio do diálogo, mediante pacientes negociações, levando em conta “as justas exigências e os legítimos interesse de todos”.

A celebração, no Vaticano, desse Tratado de Paz foi, certamente, relevante, por se tratar do reconhecimento oficial, por parte de dois Estados, da capacidade de mediação internacional da Santa Sé. O caminho do diálogo e da negociação deu certo. A presidente argentina, no seu discurso, reconhecendo que, graças à mediação do papa João Paulo II e de seu representante, o Cardeal Samoré, a guerra foi evitada, concluiu: “Quem é um mediador? É alguém que não está nem de um lado nem de outro. Está pela paz”.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Bento XVI na Cúpula da ONU sobre Segurança Alimentar

Na segunda-feira, dia 16, o papa Bento XVI chegou ao palácio da FAO (Food Agriculture Organization), em Roma, respondendo ao convite do seu diretor-geral para falar na sessão de abertura da Cúpula Mundial sobre Segurança Alimentar. Não obstante a presença de 60 países, entre os quais o Brasil, não passou despercebida a ausência dos países do G8, como Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Rússia, etc. Desse grupo, apenas a Itália participou.

O papa Bento XVI foi acolhido pelo Diretor Geral da FAO, Jacques Diouf, que, agradecendo ao Pontífice de ter acolhido seu convite, sublinhou como a presença do papa “conferia a esta cúpula uma forte dimensão espiritual para enfrentar o problema da fome no mundo”. Ele sublinhou que a Igreja Católica possui consonância de visões com a FAO, por isso a presença de seu representante máximo, o papa, “permitirá também de elevar a luta contra a fome no mundo a um nível de responsabilidade coletiva e de ética que transcenda o que está em jogo e os interesses nacionais e regionais, para reafirmar com voz clara e forte o direito à alimentação, o primeiro dos direitos do ser humano”.

No seu discurso - definido por um jornalista como “uma denúncia clara e realista de uma situação intolerável” -, Bento XVI enfrentou o tema da fome lembrando que “a terra pode suficientemente nutrir todos os seus habitantes. De fato, mesmo se em algumas regiões permaneçam baixos os níveis de produção agrícola, também por causa de mudanças climáticas, globalmente a produção é suficiente para satisfazer seja a necessidade atual seja aquela previsível para o futuro. Tais dados indicam a ausência de uma relação causa-efeito entre o crescimento da população e a fome, o que é confirmado também pela destruição de alimentos em função do lucro econômico”.

O papa Bento XVI fez um apelo aos governantes da terra para que se repense o conceito de cooperação entre países ricos e pobres: “Tal conceito deve ser coerente com o princípio da subsidiariedade: é necessário envolver as comunidades locais nas escolhas e nas decisões relativas ao uso da terra cultivável. A cooperação deve se tornar instrumento eficaz, livre de vínculos e interesses que possam absorver uma parte não desprezível dos recursos destinados ao desenvolvimento”.

Em seguida, Bento XVI alertou sobre o perigo de se considerar o problema da fome no mundo como algo estrutural: “Há o risco que a fome seja considerada como parte integrante, estrutural, das realidades sociopolíticas dos Países mais fracos, objeto de um sentido de resignado desconforto, se não até de indiferença. Não é assim, e não deve ser assim! Para combater e vencer a fome, é essencial começar a redefinir os conceitos e princípios até agora aplicados nas relações internacionais, para poder responder à interrogação: o que pode orientar a atenção e sucessiva conduta dos Estados nas necessidades dos últimos? A resposta não deve ser procurada no perfil operativo da cooperação, mas nos princípios que devem inspirá-la: somente em nome da pertença comum à família humana universal pode-se pedir a cada povo e, portanto, a cada país de ser solidário, isto é, disposto a carregar-se de responsabilidades concretas em ir ao encontro das necessidades alheias para favorecer uma verdadeira partilha fundada no amor”.

Bento XVI definiu a fome como o “sinal mais cruel e concreto da pobreza”. “Não é possível”, disse ainda “continuar a aceitar opulência e desperdício”. Concluiu afirmando que a Igreja Católica “não pretende interferir nas escolhas políticas. Ela é respeitosa do saber e dos resultados das ciências, como também das escolhas determinadas pela razão, responsavelmente iluminadas pelos valores autenticamente humanos, voltados ao esforço para eliminar a fome”.

O papa-teólogo, na FAO se revelou como o papa prático do internacionalismo da luta concreta contra a fome no mundo, escândalo da humanidade.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

A política externa da China para África (2)

Sob Deng Xiaoping, a China passara a defender uma diplomacia aberta, livre de considerações ideológicas. O pragmatismo que caracterizou a reforma econômica dentro da China caracterizou também a política externa. O continente africano exerceu desde o início forte atração para a China em função da riqueza de matérias-primas e como potencial mercado para exportações.

Mas o que diferencia a política externa chinesa na África da atuação das potências tradicionais que colonizaram o continente africano é principalmente a maneira diferente de agir dos chineses e sua postura em relação aos povos e governos africanos.

A China não integra alianças militares, não possui bases militares no exterior, como os Estados Unidos, e ela age militarmente no exterior participando apenas de missões de manutenção da paz. Seus instrumentos de trabalho em relação à África são a diplomacia, a ajuda técnica e financeira e o comércio.

A China desfruta dos recursos energéticos africanos, mas em compensação ela constrói estradas, pontes, escolas, oferecendo aos africanos uma infraestrutura que certamente representa, para os que recebem as empresas chinesas, uma melhor qualidade de vida. O governo chinês defende, portanto, um modelo de desenvolvimento comum para a África e a China, chegando a lugares de difícil acesso, que, no passado, haviam sido descartados pelos europeus por serem considerados locais não aproveitáveis. Em 2006, o presidente Hu Jintao prometeu créditos e empréstimos de longo prazo aos países africanos, no valor de cinco bilhões de dólares, e afirmou que até 2009 a China dobraria sua ajuda à África.

O governo chinês assumiu o compromisso de formar 15 mil profissionais africanos, isentar de tarifas uma nova leva de importações da África, e estabelecer até cinco zonas de livre comércio. Ela está conquistando o continente africano, não com a tradicional política de guerra e invasão, mas com uma política de cooperação e convencimento.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

A política externa da China para África (1)

A política externa chinesa, desde a época dinástica, apresentou uma característica peculiar que a diferenciou da política externa de outras nações. Na época da dinastia Han, o governo chinês precisava manter a estabilidade nas suas fronteiras ameaçadas pelos grupos nômades que saqueavam regularmente o norte da China. Dada a extensão de suas fronteiras e os altos custos que sua defesa militar exigia, os imperadores Han preferiram adotar uma política de “paz e parentesco”, entretendo o chefe nômade com presentes suntuosos e concedendo-lhe a mão de princesas Han em casamento. Ou seja, a China sempre priorizou uma política externa baseada mais na diplomacia que na guerra, pois seus imperadores procuravam compensar a debilidade militar com os meios diplomáticos.

Voltando aos dias de hoje, a China continua a defender o conceito de “ascensão pacífica” na busca de um lugar no meio internacional. Desde a fundação da República Popular da China, em 1949, o governo chinês destacou o caráter predominantemente defensivo de sua política externa, que objetivava a defesa da integridade territorial e a segurança contra investidas externas, após a difícil experiência de dominação por parte das potências ocidentais. Mao Zedong buscou, neste primeiro momento de consolidação nacional, legitimidade junto aos governos estrangeiros.

Foi neste contexto de busca de legitimação e reconhecimento internacional, que a China começa sua aproximação com o continente africano. Mao Zedong aproximou-se da África, pois procurava ampliar o número de países parceiros da China. O estreitamento das relações foi facilitado pela realização da Conferência de Bandung, na Indonésia, em 1955, a qual participaram líderes dos países africanos e asiáticos. Em Bandung, Zhou Enlai, primeiro ministro chinês, considerado o pai da diplomacia chinesa, apresentou os cinco princípios da coexistência pacífica (autodeterminação, não intervenção em assuntos internos, respeito mútuo, benefício recíproco e igualdade de tratamento).

A partir daí, a China estreitou relações diplomáticas com Egito, Argélia, Marrocos, Sudão e Guiné, concorrendo no continente africano com o trabalho paralelo dos EUA e da URSS. Graças às viagens realizadas por Zhou Enlai nos países africanos recém-independentes, Pequim conseguiu enlaçar relações diplomáticas com 19 dos 41 novos estados da época.

Na década de 1980, com a abertura econômica da China, proporcionada por Deng Xiaoping, o governo chinês reviu sua política exterior em relação ao continente africano. Três foram as orientações que nortearam a ação política chinesa na África: a manutenção da independência e da autonomia; a defesa da paz no mundo; e a busca em comum do desenvolvimento.

Continua na próxima semana...

terça-feira, 20 de outubro de 2009

O Itamaraty e a comunidade acadêmica

Nos dias 8 e 9 de outubro, realizou-se na cidade do Rio de Janeiro, no Palácio Itamaraty (antiga sede do Ministério das Relações Exteriores), o I Seminário de Alto Nível sobre Política Externa, organizado pelo Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais da Fundação Alexandre Gusmão (FUNAG), fundação pública vinculada ao Ministério das Relações Exteriores.

O evento reuniu Chefes de Departamentos do Ministério das Relações Exteriores (Embaixadores), que proferirem palestras sobre temas de política externa. Tive a honra e o prazer de participar dessa reunião junto com cerca de outros vinte docentes provenientes das mais variadas universidades do Brasil, do norte ao extremo sul, como era o meu caso, representando a Universidade Federal do Pampa, campus Santana do Livramento, na fronteira com o Uruguai.

O Secretário-Geral das Relações Exteriores, Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, deu-nos as boas-vindas também em nome do Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, que teve a feliz ideia de promover a aproximação entre o mundo diplomático e a comunidade acadêmica. Logo percebi que se tratava de um evento diferente dos outros aos quais havia participado anteriormente. Tal percepção foi confirmada pelas palavras do Presidente da FUNAG, o Embaixador Jerônimo Moscardo, que nos alertava quanto à novidade desse evento. Pela primeira vez, assuntos de política externa do Brasil, tradicionalmente reservados aos diplomatas do Itamaraty, foram comunicados à comunidade acadêmica, cujos representantes apresentaram suas dúvidas, curiosidades, questionamentos, reflexões. Tal abertura é uma boa novidade que confirma o grau de maturidade alcançado pelo Brasil em termos de política externa.

Os dois dias do evento caracterizaram-se por uma rica reflexão e aprofundamento de vários aspectos da vida política e econômica do Brasil em relação ao resto do mundo. Foram abordados temas relevantes como a Reforma do Conselho de Segurança da ONU, e a possibilidade, por meio de tal reforma, da admissão do Brasil a ocupar um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Outro tema foi a Integração Sul-americana que tratou principalmente sobre o passado, presente e futuro de organizações regionais como o Mercosul e a mais recente Unasul, de profunda relevância para o crescimento de toda a América do Sul.

Foi destacada a presença positiva do Brasil na missão humanitária junto ao Haiti e a contribuição dada pelo país a diversas organizações regionais como o G-4, G-20, o IBAS (grupo de cooperação entre Brasil, Índia e África do Sul) e o BRIC (grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia e China).

As palestras envolveram outros temas internacionais como, o grande desenvolvimento da China e Índia, novos e importantes atores internacionais. A esse respeito, o Embaixador Roberto Jaguaribe, Subsecretário-Geral de Política II do Ministério das Relações Externas para Ásia, África, Oceania e Oriente Médio, fez uma interessante comparação entre a evolução histórica, política e econômica da China e de sua vizinha Índia, explicando, também, as boas relações do Brasil com esses dois países. Os temas das Comunidades Brasileiras no Exterior – que envolveu a explanação e a aparente resolução dos recentes incidentes diplomáticos com a Espanha; o da Crise Internacional; da Cooperação Sul-Sul; da Energia e da Ciência, Tecnologia e Inovação nos ajudaram a compreender os desafios que o Brasil, como país emergente, enfrenta no seu anseio de se tornar um dos protagonistas no novo cenário internacional.

Evidentemente, há muitas dificuldades a serem vencidas para que o Brasil possa se afirmar como sujeito de relevo da ordem internacional. Isso, devido, principalmente, à desconfiança e receio das tradicionais potências que até hoje detêm o poder. Se não fossem as mudanças internacionais dessas últimas décadas, que provocaram uma grave crise nas economias tradicionais, obrigando tais potências a se abrir e aceitar eventuais mudanças nas regras do jogo internacional, elas certamente não estariam dispostas a compartilhar o poder com as novas potências emergentes. Até então, tais potências conseguiram se afirmar graças aos tradicionais recursos de poder, o assim chamado hard power (poder duro), ou seja, as armas, os recursos naturais, a grande população e as grandes extensões de território.

O Brasil está conquistando seu espaço não apenas por meio de alguns recursos tradicionais, como o grande território e a riqueza dos recursos naturais, mas, sobretudo, por meio do seu savoir-faire, como diriam os franceses, ou, se quisermos usar uma linguagem mais acadêmica, por meio de outros recursos de poder, como o soft power (poder suave), que consiste no poder de convencimento, por meio do conhecimento, tecnologia, ideias e valores. Os brasileiros estão conquistando espaço, aproveitando do imaginário de alegria, simpatia, descontração que sempre fez e continua fazendo sucesso no Velho Mundo. Mas só a simpatia não seria suficiente.

Num momento em que a superpotência americana está perdendo um pouco de sua hegemonia, as mudanças positivas da política externa de Lula e do seu excelente chanceler, Celso Amorim, permitiram ao Brasil levantar sua autoestima, negociando de igual para igual com os até então “grandes” da terra. Ninguém está disposto a ceder espaço ou poder, é preciso sabê-lo conquistar e o Brasil está dando passos inteligentes nesse caminho.

domingo, 4 de outubro de 2009

Entrevista Rádio CBN

Fato em Foco
Os 60 anos da República Popular da China - parte I
Ouça a primeira parte do programa, com Bernardo Kocher, professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense, e Anna Carletti, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal do Pampa.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Pequim festeja os 60 anos da República Popular da China

O governo de Pequim festejará amanhã, quinta-feira, os 60 anos da República Popular da China, proclamada por Mao Zedong no dia 1º de outubro de 1949. Para tal recorrência, as autoridades chinesas prepararam um espetáculo à altura da festividade, certamente, organizado com o mesmo cuidado com o qual foi apresentada a inesquecível cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos do ano passado. O presidente Hu Jintao fará um pronunciamento oficial na simbólica Praça da Paz Celestial (Tiananmen) seguido de um imponente desfile das forças armadas chinesas, sinal da posição alcançada a duras penas nesses 60 anos, como uma das maiores potências militares, econômicas e políticas do mundo.

Mais uma vez, a atenção do mundo se voltará para o gigante asiático, e seus críticos mais acirrados estarão prontos a apontar o dedo contra os inevitáveis incidentes que perturbarão essa cerimônia. Conscientes disso, as autoridades chinesas - como já ocorreu às vésperas da abertura dos Jogos Olímpicos - reforçaram a segurança não apenas na capital, como em todo o país, especialmente nas províncias mais distantes e problemáticas, como o Tibete e o Xinjiang. A população de Pequim foi convidada a assistir à cerimônia pela TV, evitando os temidos aglomerados nas praças da cidade, onde 800 mil pessoas foram recrutadas para trabalhar junto aos policiais para garantir maior segurança.

Diante desse cenário, surge espontânea uma pergunta: quem é o verdadeiro protagonista dessa festa, a República Popular da China e, portanto, seu povo, ou o Partido Comunista Chinês, que conseguiu conservar sua supremacia, apesar das grandes mudanças internacionais?

A proclamação da República Popular da China significou, para Mao Zedong, seu líder, o fim do período de humilhação e exploração econômica, ao qual o povo chinês tinha sido submetido por mais de um século por parte das potências estrangeiras. Mao Zedong queria construir uma Nova China, livre da corrupção que caracterizara o governo nacionalista de Chang Kai-shek, obrigado pelas tropas comunistas a abandonar o país. A população saudou Mao como o libertador que garantiria um futuro brilhante, de fartura e igualdade para todos os chineses. Contudo, Mao não conseguiu realizar suas promessas. Após os primeiros felizes anos de reformas e de reconstrução da indústria pesada, sob inspiração do modelo soviético, uma série de passos em falso, dados pelo Grande Timoneiro, marcou o início da crise.

Os resultados catastróficos do famoso plano quinquenal, chamado de “Grande Salto em Adiante”, que deveria levar a China a superar a Inglaterra em quinze anos, provocaram a morte por fome de milhões e milhões de chineses. Após a morte de Mao Zedong, em 1976, foram revelados os números assustadores de mortes acontecidas naqueles anos: cerca de trinta milhões!

A chegada de Deng Xiaoping ao poder, em 1978, trouxe, novamente, à população chinesa, uma mensagem de esperança, com as promessas de prosperidade. Abandonando os dogmas da ideologia comunista, Deng abraçou uma nova ideologia, a do dinheiro, do enriquecimento rápido. Em pouco mais de 30 anos, Deng Xiaoping conseguiu reconstruir a economia chinesa, tornando o país protagonista inconteste do cenário internacional.

Foram 400 milhões os chineses que saíram da linha de pobreza, um número considerável, mais do que o dobro da população brasileira. O atual presidente Hu Jintao repete frequentemente o lema de seu governo: construir na China uma “sociedade harmoniosa”, ciente de vários fatores de conflito que colocam em perigo a estabilidade do país. Entre esses fatores, o desequilíbrio existente entre as regiões costeiras mais desenvolvidas e riquíssimas e as regiões do interior, subdesenvolvidas, com serviços básicos precários; a corrupção dos funcionários do partido, que distancia sempre mais a população dos seus governantes; a ausência de políticas públicas eficientes. A sociedade civil chinesa reclama urgentes reformas políticas, que não coincidem com o nosso sistema ocidental, diferente e, de fato, nem sempre bem sucedido em relação ao que promete.

O povo chinês está pedindo a palavra e, mais cedo ou mais tarde, os atuais líderes deverão ouvi-lo. Com o aniversário de 60 anos, data-símbolo de maturidade, talvez a República Popular da China encontre um novo caminho, pelas mãos do seu povo, mas, desta vez, de forma pacífica.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Mudanças climáticas em debate na 64ª Assembleia Geral da ONU

Ontem, teve início a 64ª Assembleia Geral da ONU, na cidade de Nova Iorque, convocada pelo secretário-geral Ban Ki Moon e que reúne os países membros da Assembleia Geral da ONU. Atualmente, os países membros são192, entre os quais 15 são membros do Conselho de Segurança da ONU (cinco permanentes com direito de veto: Estados Unidos, China, Federação Russa, França e Reino Unido, e dez membros eleitos rotativamente por dois anos). Muitos os temas que serão discutidos nesses dias: mudanças climáticas, aquecimento global, meio ambiente, crises regionais e proliferação de armas nucleares. As reuniões gerais serão intercaladas por encontros bilaterais entre os líderes mundiais. Muito esperado é o encontro organizado pelo presidente americano Barack Obama entre o líder palestino Abu Mazen e o israelita Netanyahu. Obama até agora não conseguiu convencer o governo israelita a bloquear os assentamentos nos territórios ocupados, por isso, prevalece o pensamento de que tal encontro não produzirá resultados imediatos para o processo de paz entre os dois governos.

Para hoje, estão previstas os pronunciamentos do presidente Lula, do líder líbico Gheddafi (membro eleito do Conselho de Segurança por dois anos), o presidente francês Sarkozy, o primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi, o primeiro-ministro iraniano Ahmadinejad, o líder russo Medvedev, o primeiro-ministro inglês Gordon Brown e o presidente chinês Hu Jintao. Aliás, espera-se que, nessa 64ª Assembleia Geral da ONU, a China possa oferecer uma contribuição significativa para sair do impasse da última reunião mundial, quando os governos chineses e americanos recusaram-se a mudar o quadro alarmante da poluição do planeta, pois um queria esperar pelo outro.

O Chefe do Departamento Climático da ONU, Yvo De Boer, anunciou que espera que a China saia da assembleia como a líder mundial dos programas de despoluição. Tal esperança fundamenta-se nos ambiciosos programas ambientais que a China apresentará nesses dias. Hu Jintao disse que até 2020, 15% da energia na China deverá ser produzida por fontes renováveis, além de declarar o empenho do país para uma melhor eficiência na produção e no uso de energias que levará a uma diminuição da poluição pelo tráfego de automóveis e no fechamento de indústrias poluentes. A China e os Estados Unidos são responsáveis por 40% das emissões mundiais de anidrido carbônico. Contudo, apenas o empenho da China, se respeitado, não é suficiente para melhorar a situação climática mundial. Ocorre também o empenho americano. Barack Obama, ao contrário do seu predecessor, que se recusou a assinar os Tratados de Kyoto, conseguiu recentemente fazer aprovar pela câmara de deputados um projeto de lei que reduzirá a emissão de gases poluentes, mas tal projeto ainda tem que ter a aprovação do senado.

O futuro do nosso planeta está nas mãos de poucos líderes mundiais. Tomara que esses debates possam resultar finalmente em políticas mundiais eficazes voltadas para o bem-estar de todos.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

As divergências entre Berlusconi e a Igreja Católica italiana

Há algum tempo, as vicissitudes pessoais do primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, são argumentos polêmicos de discussão acirrada entre seus amigos e inimigos políticos. Um escândalo sexual envolveu o primeiro-ministro nesse verão, quando vários jornais publicaram as fotos de Berlusconi ao lado de prostitutas desnudas durante as fabulosas festas por ele organizadas na sua mansão na ilha da Sardenha. O último escândalo, envolvendo também uma menor de idade, resultou no pedido de divórcio por parte da esposa de Berlusconi. Nesse turbilhão de acusações e ataques, os jornais oficiais da igreja católica, após um tempo de silêncio diplomático, não conseguiram ficar em campo neutro.

O jornal católico que denunciou abertamente os mal-feitos de Berlusconi foi o “Avvenire”, órgão oficial da Conferência Episcopal Italiana (CEI). O editorial de denúncia, de autoria do secretário geral da CEI, contra a libertinagem do primeiro-ministro italiano, obrigou o diretor do jornal Avvenire, Dino Boffo, a abrir o dique das pressões e reivindicações dos representantes católicos antiberlusconianos que se subseguiram nas páginas do “Avvenire” contra o primeiro-ministro italiano. Tal posição de denúncia contra o atual governo italiano gerou certo desconforto na Santa Sé, que se viu obrigada a intervir no mais alto nível das relações diplomáticas com o estado italiano. Por isso, o secretário de estado da Santa Sé (cujo cargo corresponde ao ministro das relações exteriores nos outros estados) decidiu marcar um encontro com Berlusconi por ocasião da visita de ambos à cidade de L’Aquila, vitimada por um terremoto no ano passado.

Trilhando o mesmo caminho, o jornal católico, “L’Osservatore Romano”, órgão oficial da Santa Sé, tentou minimizar os boatos que alarmavam sobre o conflito entre o estado Italiano e o Vaticano, distanciando-se da posição dos bispos italianos e tranquilizando a população sobre as relações entre os dois estados. A Santa Sé demonstrou mais uma vez sua orientação pragmática em âmbito internacional, recusando-se a entrar em tal polêmica. Mesmo assim, o jornal de centro-esquerda “La Repubblica” acusou o secretário de estado Tarcisio Bertone de querer sentar à mesa de Herodes, ao invés de acusá-lo publicamente, como fazia João Batista.

Quanto ao jornal “Avvenire”, seu diretor foi difamado pelo jornal “Il Giornale” – de propriedade do irmão de Berlusconi - acusando-o de ter molestado a esposa de um homem com o qual teria mantido relações. Mesmo após a acusação ter sido desmentida publicamente, o diretor do jornal católico preferiu demitir-se. Em sua defesa, acorreram até os tradicionais “inimigos” da igreja católica, os jornais de esquerda, demonstrando que a luta pelo poder tem a capacidade de transformar velhos inimigos em novos amigos e vice-versa. Em suma, como se diz no Brasil, um enorme “rolo” em bom estilo cinematográfico.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Livramento e Rivera - As cidades da Fronteira da Paz

Há pouco mais de duas semanas, por motivos de trabalho, estabeleci minha residência, junto com a família toda, aqui em Santana do Livramento, cidade gaúcha na fronteira com o Uruguai. Foi a segunda grande mudança em minha vida. A primeira foi quando de Roma mudei para o Brasil, vindo morar em Tubarão. Nos primeiros anos, nem deu para sentir saudades da Itália, tantas eram as novidades, os lugares bonitos que ia descobrindo, as novas amizades, etc. A única coisa de que senti falta em todos esses felizes anos na Cidade Azul, talvez, tenha sido não ter os contatos internacionais quase que diários aos quais estava acostumada desde a minha infância, em Roma. Na minha cidade natal - “caput mundi” como era chamada pelos antigos romanos - a vivência internacional sempre foi e continua sendo um dos elementos constitutivos da cidade.

Após alguns dias em Santana do Livramento, percebi que aqui não sentiria essa falta. Mesmo Livramento não sendo localizada no que se pensa ser o centro do mundo, percebi que as raízes históricas, políticas e econômicas de Santana do Livramento afundam e alimentam-se em terras caracterizadas pela internacionalidade. Basta dar um passeio nas ruas da cidade e prestar ouvido aos idiomas falados nas ruas, três pelo menos: português, espanhol e árabe (esse último pela presença em Santana de uma significativa comunidade muçulmana).

Avançando na nossa caminhada, chega-se em minutos à fronteira com o Uruguai, fronteira aberta, marcada apenas pelas duas bandeiras nacionais que esvoaçam alegremente no Parque Internacional situado entre os dois países. As minhas filhas logo brincaram de pular de um país ao outro, felizes dessa nova experiência. Olhando essa brincadeira, fiquei refletindo e percebendo quão peculiar é essa fronteira onde Deus nos enviou e qual seria o papel dessa cidade que, junto com a vizinha Rivera, deram vida à significativa e promissora Fronteira da Paz.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

O legado do diplomata-filósofo Sérgio Vieira de Mello

A partir desse ano, no dia 19 de agosto será celebrada a Jornada Humanitária Mundial em homenagem a todos aqueles que sacrificaram suas vidas no serviço humanitário aos mais necessitados, às vítimas das guerras e catástrofes naturais nos mais longínquos e desconhecidos cantos do nosso planeta. Essa data não foi escolhida por acaso, pois nessa quarta-feira, dia 19 de agosto, recorre o sexto aniversário da morte de Sérgio Vieira de Mello, o diplomata brasileiro que, em 2003, morreu junto com outros 21 funcionários da Onu, em um ataque terrorista em Bagdá, capital do Iraque. Com o apoio do Brasil, França, Japão, Suécia e Suíça, a Fundação Sérgio Viera de Mello convenceu a Assembleia Geral da ONU, em dezembro passado, a instituir a Jornada Humanitária Mundial para que o legado de pessoas como Sérgio Vieira de Mello não fosse esquecido.

Sérgio Vieira de Mello trabalhou 33 anos nas Organizações das Nações Unidas. Nascido no Rio de Janeiro em 1948, formado na Universidade Sorbonne, em Paris, começou a trabalhar aos 21 anos junto ao Alto Comissariado para os refugiados da ONU, em Genebra, na Suíça. Participou de operações humanitárias em países marcados por graves conflitos como Sudão, Chipre, Moçambique, Peru, Líbano, Camboja. Em 1999, foi representante do secretário-geral da ONU no Kosovo. Na mesma função, trabalhou para a resolução do conflito no Timor Leste.

Em 2002, em reconhecimento do seu brilhante trabalho, foi nomeado Alto Comissário dos Direitos Humanos da ONU. No ano seguinte, decidiu afastar-se temporariamente desta função para atuar como representante especial do secretário-geral da ONU, no Iraque, no contexto da invasão americana do país. Objetivo da missão da ONU era trabalhar para restabelecer a paz e ajudar o país a construir um governo democrático após o fim do conflito. Seu serviço no Iraque durou somente quatro meses. Morreu durante o atentado do dia 19 de agosto de 2003.

Sérgio de Mello, além de diplomata, era filósofo e gostava de aplicar a filosofia à diplomacia. Filósofo kantiano, ele defendia a tese segundo a qual o princípio filosófico básico que deveria orientar as relações humanas e entre os Estados era o da intersubjetividade, ou a capacidade de pôr-se no lugar dos outros – mesmo como transgressores. Na sua biografia, lemos uma frase muito significativa de Sérgio: “Se pudéssemos ajudar cada indivíduo a ampliar a capacidade de adotar a perspectiva do outro, os filósofos poderiam contribuir para provocar uma conversão”. E não mediu esforços em difundir a ideia de que a ONU deveria ser um “casulo em que se poderia tecer pacientemente acordos e formas possíveis de harmonia”. Provavelmente ele herdara esta concepção sobre a ONU do pensamento do filósofo alemão Immanuel Kant que, em 1795, escreveu uma obra chamada “Projeto de Paz Perpétua”. Nela, Kant propôs, profeticamente, a constituição de uma organização voltada à coexistência pacífica entre todos os povos, onde a ideia da razão prática opunha-se ao estado natural propenso aos conflitos.

A atuação de Sérgio Vieira de Mello era inspirada nos princípios kantianos de busca da paz por meio de uma ordem multilateral. O professor Jacques Marcovitch, ex-reitor da USP, assim descreve a atuação de Vieira de Mello: “Este brasileiro tão preocupado com a consciência do mundo acreditou na força das ideias, da palavra, do convencimento, excluída qualquer mediação de poderes. O seu grande instrumento de trabalho, em todos os momentos, foi a interlocução construtiva e harmoniosa. O diálogo, mais que iniciativa política, é doação ética. Por meio dele uma parte recebe de outra o fruto da meditação solitária e inteligente. É desta forma que se impede a ressurreição da barbárie e materializa-se o ideal da alteridade. Os outros podem ser o inferno de cada um, como queria Sartre? Sim, mas os outros também podem representar, no intercâmbio de opiniões e ideias, fontes inesgotáveis de valores. A construção de pontes interculturais foi uma consequência pouco visível no trabalho deste grande ator da contemporaneidade”.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

O povo filipino despede-se de sua amada Cory Aquino

No último sábado, dia 1º de agosto, morreu Corazón Aquino, aos 76 anos, mais conhecida como Cory Aquino. Ela foi a primeira mulher a assumir a presidência de um país asiático e liderou com sucesso, em 1986, a revolta política que devolveu a democracia ao povo filipino. Filha de uma família muito rica, após ter estudado nos Estados Unidos, casou-se, em 1954, com Benigno Aquino.

Nos anos seguintes, acompanhou de perto a brilhante carreira política do esposo, desempenhando ao mesmo tempo seu papel de mãe de cinco filhos. Em 1973, o ditador Ferdinando Marcos proclamou a lei marcial e mandou prender seus opositores políticos entre os quais estava Benigno Aquino que ficou preso por sete anos. Em 1980, quando da liberação de Benigno, a família Aquino emigrou nos Estados Unidos, onde permaneceu por três anos. Em 1983, Benigno Aquino e sua família decidiram retornar ao seu país com a esperança de poder vencer as eleições presidenciais previstas para o ano seguinte.

Mas, assim que Benigno desceu do avião, foi assassinado. Em vez de se fechar em sua dor, Cory Aquino decidiu enfrentar o ditador Marcos, organizando um forte movimento de oposição. Com efeito, logo após a morte do esposo, ela declarou: “O que é mais importante é que ele não morreu em vão e que seu sacrifício certamente despertará o povo filipino de sua apatia e indiferença”. O povo filipino decidiu apoiar a coragem dessa extraordinária mulher.

Em 1986, Cory apresentou-se como candidata, disputando a presidência do país contra o regime ditatorial do então presidente Marcos. Diante do sucesso eleitoral de sua adversária política, Marcos procurou manipular os resultados eleitorais e proclamou-se vencedor, apostando sua vitória mais uma vez na repressão militar de seus opositores, e não no apoio popular. Cory Aquino não se deixou intimidar. Escolheu o caminho da não violência e, apoiada pelo então Cardeal Sin, liderou uma revolução diferente, a “revolução dos rosários”, ou, como foi chamada depois, “A revolução do poder popular”. Tal revolução conseguiu conquistar até o exército.

As tropas militares decidiram abandonar o ditador Marcos e apoiar a revolta popular. Cory Aquino governou o país até 1992, atuando politicamente em favor da pacificação do país. Buscou o diálogo com os guerrilheiros comunistas e com os grupos muçulmanos do sul do país, liberou prisioneiros políticos e devolveu a liberdade ao povo filipino, instaurando um regime democrático. Permaneceu firme no governo do país mesmo diante das várias tentativas de golpes de Estado, dirigindo o país de forma honesta, combatendo a corrupção e as tentativas de monopólio de poder por parte das ricas famílias tradicionais do país.

Pela sua atuação política, Cory Aquino foi indicada, em 1986, ao Prêmio Nobel da Paz e recebeu vários reconhecimentos internacionais pela luta em defesa dos direitos humanos e da paz. Mesmo após deixar a presidência do país, não abandonou seus ideais políticos e, em 1997, destacou-se por liderar um novo movimento popular contra o então presidente Fidel Ramos, acusado de querer instaurar uma nova ditadura nas Filipinas.

Nesses dias, vários líderes mundiais homenagearam Cory Aquino, reconhecendo a importância de seu legado político. O presidente Barack Obama evidenciou que “a coragem, a determinação e a liderança moral de Cory Aquino são uma inspiração e mostra o melhor do povo filipino”. A atual presidente das Filipinas, Glória Arroyo, proclamou luto nacional por dez dias. O povo filipino acorreu numeroso diante do corpo de sua líder, que foi muito escutada e amada no país. A ela será dedicado um curso de estudos destinado a lembrar sua incontestável contribuição política em favor da paz e da democracia.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

A política chinesa do filho único abre uma exceção

O crescimento e controle da população ocupam lugar importante na agenda dos governos. Se tal afirmação é válida para todos os estados, pode-se imaginar a importância do tema para um país como a China que possui a maior população do mundo. Entre os séculos 18 e 19, na China, como em muitos outros estados, fazia parte da lógica da época a ideia que, quanto maior fosse o número de filhos, maior seria o poder econômico da família. O próprio Mao Zedong, nos anos 50, foi o responsável do boom demográfico incentivando os camponeses a ter mais filhos, futuros braços para o desenvolvimento rápido da agricultura e o consequente enriquecimento do país.

Nos anos 60, porém, o fracasso das campanhas lançadas por Mao e o crescimento desmesurado da população gerou problemas gravíssimos à economia do país. Diante disso, o governo tentou controlar o crescimento da população, mas esbarrou na mentalidade tradicional dos camponeses. Em 1978, Deng Xiaoping impôs a política do filho único. Quem aderisse a tal política receberia prêmios, como a garantia de ajudas econômicas à família, assistência sanitária e escolar gratuita. Quem desrespeitasse tal diretriz incorreria em sanções como multas, redução do salário dos pais, ou perda de benefícios ligados ao status do filho único. Lembro de ter conhecido, em Roma, um casal de jovens engenheiros chineses enviados pelo governo chinês numa empresa estatal italiana para um estágio.

A única filha ficou com os avós em Pequim. Eles contaram que queriam muito ter outro filho, mas que isso significaria o fim de suas carreiras, não teriam mais direito a promoções ou incentivos. A política do filho único alcançou sua meta de reduzir a taxa de natalidade, ao menos nas grandes cidades onde o controle consegue ser mais eficaz. Porém, com o tempo, apresentou alguns efeitos colaterais que estão gerando preocupação nas autoridades chinesas. O primeiro é o desequilíbrio numérico que se criou entre meninos e meninas. Desde a antiguidade, existe na China uma tradicional preferência pelos filhos meninos que garantem a continuidade da família.

Isso provocou, ao longo dos anos, atitudes gravíssimas como o assassinato das meninas recém nascidas e o aborto seletivo, muitas vezes clandestino. A desproporção atual entre homens e mulheres gerou outros problemas graves como a venda ou o sequestro de meninas, principalmente no interior da China. Outro efeito é o envelhecimento da população, que, se de um lado, reflete uma qualidade de vida melhor, de outro, constitui um aumento da despesa pública em matéria de aposentadoria e a diminuição de mão-de-obra disponível. Tais efeitos colaterais levaram as autoridades políticas de algumas regiões chinesas a inverter a rota após duas décadas de política do filho único. Quem inaugurou tal inversão de rota foi a região de Xangai, projeto piloto do crescimento econômico chinês.

A Comissão de Planejamento Familiar e Populacional de Xangai lançou uma campanha para incentivar casais a terem um segundo filho. Xangai foi escolhida para o lançamento dessa campanha inédita por ter 22% de habitantes com mais de 60 anos. Xie Lingli, diretor da Comissão de Planejamento Familiar, afirmou que a campanha apenas objetiva resolver o problema do crescente número de idosos, mas que isso não significa que o governo chinês queira rever a política de planejamento familiar. De fato, por enquanto, apenas os casais autorizados poderão ter um segundo filho. São sete as condições que permitem ter um segundo filho.

Dentre essas, uma é que os pais sejam filhos únicos, uma outra é que os cônjuges estejam registrados oficialmente como camponeses e tenham um filho do sexo feminino. Muitos casais ficaram felizes com a iniciativa do governo, sobretudo quem sofreu de solidão na infância pela ausência de irmãos ou irmãs. Outros, porém, mesmo estando entre o grupo de casais autorizados, afirmam que um dos maiores obstáculos é o peso econômico que um segundo filho comportaria na economia familiar. Mesmo com maior abertura, fatores culturais típicos do período moderno chinês, como o medo da perda da comodidade, certamente impedirão uma nova explosão demográfica na China.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Mudança de estratégia no Afeganistão

Na semana passada, na TV italiana, assisti à transmissão do funeral de um jovem soldado italiano de apenas 25 anos, morto no Afeganistão no último dia 14 de julho, num atentado organizado pelos talibãs. Poucos dias depois, o jornal transmitiu o vídeo de um soldado americano, de 23 anos, sequestrado pelo mesmo grupo em dezembro passado. No vídeo, o jovem americano, após pedir a retirada imediata das tropas americanas do Afeganistão, falou da saudade que sentia de sua casa, de sua família e do medo de não poder nunca mais abraçar seus pais. Nesses oito anos de ocupação militar do país, a Grã Bretanha perdeu no Afeganistão mais de 100 militares, mais do que no Iraque.

As tropas estrangeiras chegaram em 2001, após a intervenção militar organizada pelos Estados Unidos, com o objetivo de derrubar a ditadura dos talibãs. Foi uma “guerra do criador contra sua criatura”, como a definiu o professor Visentini, internacionalista que muito sabiamente desde então já alertava que “derrubar os talibãs não levaria ao fim desta guerra”. Com o fim do regime dos talibãs, o país ganhou um pouco mais de liberdade. As meninas puderam voltar à sala de aula, as jovens não são mais obrigadas a vestir os pesados burka, mas ainda há muitas mulheres que não têm liberdade e sofrem violência dentro da própria casa. A população afegã que apostava num futuro melhor para o país ficou decepcionada. O país continua sendo um dos mais pobres do mundo.

Faltam água e energia elétrica, racionadas até na capital. O estado oferece poucas escolas. As demais são abertas graças à obra incansável de associações privadas que trabalham em favor da população afegã. Num relato de alguns estrangeiros que vivem no Afeganistão, publicado no site Ásia News nessa semana, destacava-se a indiferença dos afegãos diante das tantas mortes de soldados ocidentais. “Infelizmente, a morte virou uma rotina para eles”, sublinhava a fonte de Ásia News, lembrando que no país uma em cinco crianças morre antes de completar o quinto ano de vida. A eleição do presidente Karzai, em 2004, candidato apoiado pelos Estados Unidos, não trouxe grandes mudanças. Seu governo demonstrou-se politicamente muito fraco, incapaz de reagir às ações nefastas dos senhores da guerra, presentes no próprio parlamento e que agem em favor dos próprios interesses econômicos.

Dentro desse quadro, muitos se perguntam sobre a eficácia da presença dos militares ocidentais no Afeganistão. Apesar da imensa dor das famílias dos jovens soldados mortos ou sequestrados, a maioria dos governos ocidentais está ainda convicta que deixar o Afeganistão agora não seria uma solução satisfatória para ninguém. De outro lado, percebe-se a necessidade de uma mudança de estratégia. A força das armas, usada pelo governo Bush em 2001, não acabou com a guerra civil no país. Os soldados ocidentais são vistos com desconfiança pela população, assim como os representantes estrangeiros das Nações Unidas que os afegãos observam todo dia passar em seus carros de luxo nas ruas pobres de Cabul.

Tais missões chamadas “humanitárias” muitas vezes não conseguem atingir os objetivos prefixados, permanecendo distantes da população. Na sua longa experiência de representante da ONU em regiões de conflito, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello várias vezes colocou em evidência o paradoxo de tal situação. Na sua biografia, por exemplo, lemos que, durante o conflito na Bósnia, Sérgio Vieira de Mello, não querendo permanecer confinado dentro do complexo seguro da ONU, tentou estabelecer uma ligação com as “ruas bósnias”.

A autora da biografia conta que, enquanto os disparos dos francoatiradores soavam nas tardes invernais, ele parecia despreocupado e raramente trajava o colete à prova de balas, fornecido pela ONU. “Como posso usar essa coisa”, reclamava Sérgio à sua intérprete, “quando você, sua família e os vizinhos andam por aqui sem nada?”. Para as eleições presidenciais do próximo dia 20 de agosto, Barack Obama quis garantir um processo eleitoral pacífico, aumentando o contingente militar no país. Ao mesmo tempo, porém, reconheceu que deve ser estabelecida uma nova forma de relação com a população afegã, trabalhando para que o país alcance sua autonomia o mais rapidamente possível.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Pequim e a província muçulmana de Xinjiang

Domingo, 5 de julho, na cidade de Urumqi, capital da província chinesa de Xinjiang, o choque entre a polícia chinesa e um grupo de manifestantes provocou a morte de 140 pessoas e o ferimento de outras 800. A revolta parece ter surgido inicialmente como protesto pelo assassinado de dois muçulmanos de etnia uigur, na cidade de Cantão, no final de junho. Logo, porém, as manifestações revestiram-se de contornos nacionalistas pró-independência. O governo chinês reprimiu os protestos acusando grupos uigures do exterior de fomentar o movimento separatista na região justamente na véspera do G8. Como no caso do vizinho Tibete, também na região autônoma do Xinjiang, localizada no coração da Ásia Central, existem grupos separatistas que lutam há décadas pela independência do Turquistão Oriental ou Turquistão chinês, como é chamado por eles o Xinjiang.

Ao contrário de alguns dados imprecisos difundidos pela mídia, que afirma que o Xinjiang teria sido anexado em 1949 pelo governo comunista, esse território faz parte oficialmente da China desde 1758, quando da conquista por parte da dinastia Qing. Entre a queda da última dinastia chinesa, em 1911, e a proclamação da República Popular da China, Moscou tentou estender sua influência sobre a região, alimentando tentativas de separatismo. Uma vez no poder, os comunistas deixaram claro que o Xinjiang era parte integrante do território chinês, e por isso adotaram a política de enviar grupos pertencentes à etnia majoritária Han, para reforçar os vínculos culturais com aquela região tão distante da capital.

Para os chineses, de fato, o Xinjiang era uma terra inóspita, para onde eram enviados criminosos ou políticos banidos. Na época de tal forçado deslocamento, apenas 8% da população do Xinjiang era constituído por chineses da etnia Han. Atualmente, esses últimos constituem quase 40% dos 17 milhões de pessoas que habitam a região. Cerca da metade da população da região pertence a etnias minoritárias, todas muçulmanas, entre as quais se destaca a etnia uigur, acusada pelo governo de Pequim de fomentar o separatismo. A língua e cultura dos uigures provêm da Turquia, país que ainda hoje exerce profunda influência sobre as regiões centroasiáticas com seu ideal pantúrquico de uma única nação que iria da Europa dos Bálcãs até o Xinjiang.

Desde 1990, grupos islâmicos para a liberação da região do Xinjiang realizaram numerosos atentados em nome da guerra santa contra os infieis (jihad), o que resultou em um controle mais rígido por parte das autoridades chinesas. O governo de Pequim fechou as escolas islâmicas e permite o acesso às mesquitas somente para os maiores de 18 anos. A criação, em 2001, do Movimento Islâmico do Turquistão, uma formação extremista provavelmente financiada pela Al-Qaida e pelo narcotráfico, reforçou os argumentos de Pequim para reprimir qualquer tipo de manifestação popular.

É interessante notar que, ao contrário do Tibete, as repressões contra os manifestantes uigures não despertam tanta reprovação internacional. Talvez isso seja devido a dois fatores: o fato de os muçulmanos uigures não poderem contar com a figura carismática de um líder religioso como o Dalai Lama, e a desconfiança generalizada por parte do Ocidente em relação à criação de uma República Islâmica independente na Ásia Central. Contudo, há quem diga que a ação dos grupos de fundamentalistas islâmicos no Xinjiang seria usada como pretexto por parte de Pequim para reprimir qualquer tipo de manifestação popular contra o governo, mesmo se pacífica, como foi considerada a do último domingo.

Tais protestos seriam resultado do mal-estar generalizado entre a população muçulmana frente às políticas de Pequim que favoreceriam os imigrados chineses da etnia Han. De fato, eles possuem uma renda mais alta do que o resto da população, além de acesso a empregos públicos mais atraentes. A divisão inter-étnica, devido à presença “colonizadora” dos Han, é um elemento desestabilizador que Pequim não pode subestimar, tendo em conta a importância estratégica da região, rica em petróleo e gás, especialmente dentro das relações privilegiadas com os membros do grupo de Xangai (Rússia, China, Uzbequistão, Quirquistão, Tajdiquistão e Cazaquistão).

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Honduras e o fantasma do golpe de estado

Desde o último domingo, a população de Honduras enfrenta uma grave crise política. O presidente Manoel Zelaya foi obrigado pelas forças armadas a sair do país e encontra-se em exílio na Costa Rica. Roberto Micheletti, presidente do congresso de Honduras, fez-se nomear, imediatamente, presidente interino, declarando que permanecerá no poder até 29 de novembro, data prevista para as próximas eleições presidenciais. Foi o primeiro golpe de estado na América Latina após 16 anos de relativa tranquilidade política. Mas golpes de estado fazem parte da tradição política desse país, que é considerado o mais pobre após o Haiti.

Por meio de golpes de estado, diversos governos militares conseguiram derrotar governos reformadores interrompendo bruscamente as tentativas de reverter a condição de extrema pobreza de grande parte da população hondurenha. Nas suas relações externas, Honduras foi por longo tempo aliado dos Estados Unidos, que ali instalaram estrategicamente uma base militar para combater as forças sandinistas da Nicarágua. Os Estados Unidos costumavam apoiar os candidatos do Partido Nacional, de cunho conservador, contra os candidatos do Partido Liberal, mais próximos à população. Como de costume, em 2006, os republicanos americanos apoiaram a candidatura do nacionalista Porfírio Lobo. Porém, ele foi derrotado pelo candidato liberal, Manoel Zelaya, apoiado pelos democratas americanos. No poder, Zelaya inaugurou uma nova administração política.

Internamente, aumentou o salário mínimo, estreitando alianças com os setores populares do país, visando combater a exclusão social generalizada e a violência urbana, com índices entre os maiores do mundo. Com efeito, entre os anos de 1998 e 2005, foram contados 2.720 assassinatos de jovens entre 12 e 22 anos. Zaleya opôs-se à pena de morte como remédio para interromper tal ciclo de violência, acreditando que precisava combater as causas da violência identificadas na injusta distribuição de renda entre a população. Externamente, Zaleya aproximou-se da Venezuela, com o qual assinou tratados em matéria de petróleo.

Além disso, em 2008, ingressou na Aliança Bolivariana para as Américas (ALBA), da qual fazem parte Venezuela, Equador, República Dominicana, Nicarágua, Cuba. O ingresso nesta organização foi contrastado pela maioria do congresso, que acompanhava com desconfiança os novos rumos da política governamental, claramente em oposição às políticas conservadoras de salvaguarda dos interesses econômicos de banqueiros, empresários e latifundiários, que contam com o apoio político do poder judiciário e das forças armadas hondurenhas. Olhando a situação desse ponto de vista, as causas do enfrentamento entre o presidente Zelaya e os outros poderes nacionais parecem um pouco mais claras.

Zelaya queria fazer uma consulta quanto à possibilidade de colocar uma quarta urna no dia das eleições presidenciais, 29 de novembro, relativa a uma possível revisão da Constituição. Tal projeto serviu de pretexto para o golpe, que foi contra as reformas sociais pretendidas por Zelaya. O congresso apressou-se, no início da semana passada, em aprovar uma lei que proíbe a realização de consultas populares 180 dias antes ou depois das eleições nacionais, invalidando o projeto de Zelaya.

Observando atentamente as datas, conclui-se que a acusação do congresso de que Zelaya queria realizar a consulta de domingo para poder reeleger-se é infundada, pois não daria tempo para ele reeleger-se visto que a consulta relativa à mudança da Constituição aconteceria no mesmo dia das eleições presidenciais. Zelaya foi vítima do poder conservador das elites econômicas em busca de uma desculpa qualquer para tirá-lo do poder. Ao contrário de outros golpes, as forças conservadoras hondurenhas não receberam o apoio internacional esperado. Desta vez, o democrata Barack e o bolivariano Chavez estão do mesmo lado, contra o golpe.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

A nova revolução no Irã

Desde o dia 12 de junho, quando o resultado das eleições no Irã apontou para a vitória do presidente Mahmoud Ahmadinejad, reeleito com mais de 62% dos votos, o país tornou-se palco de protestos por parte dos oposicionistas, que apoiavam a candidatura à presidência do reformador Mir Houssein Moussavi. As manifestações de protesto que estão tomando cada dia mais força visam denunciar uma suposta fraude eleitoral por parte do governo de Ahmadinejad para impedir a eleição de Moussavi. O líder supremo do Irã, Aiatolá Khameini, ordenou que o Conselho dos Guardiões procedesse a uma recontagem dos votos para tentar acalmar a população, que há dias ocupa as principais ruas e praças de Teerã, capital do Irã.

Em pleno século 21, a imagem dos 12 guardiões, clérigos muçulmanos, reunidos para decidir o futuro próximo de milhões de iranianos, para nós que moramos em países onde há uma clara separação entre igreja e estado, é sem dúvida anacrônica, mas, para a República Islâmica do Irã, não o é. Desde 1979, quando a dinastia Pahlavi - que governou o país por mais de 50 anos - foi derrubada, e o Aiatolá Khomeini proclamou a República Islâmica do Irã, o país é governado por um líder religioso supremo que, além de decidir os rumos da política externa e interna da nação, chefia as Forças Armadas. Um grupo de 12 clérigos juristas - seis indicados pelo Aiatolá e outros seis pelo líder do judiciário - formam o Conselho dos Guardiões.

Trata-se de um grupo com muito poder que trabalha para o Líder Supremo (Aiatolá) na administração do país, interpretando a Constituição de acordo com a visão do grupo sobre os princípios religiosos do Islã. Da mesma forma, o poder judiciário é subordinado à sharia (lei islâmica). Na época anterior à derrubada da dinastia Pahlavi, o governo do Irã mantinha relações estreitas com os países ocidentais, sobretudo com os Estados Unidos, do qual tentava copiar a american way of life. Em 1963, o Xá Mohammad Pahlavi - no período chamado de Revolução Branca - lançou diversas reformas no intuito de modernizar o país: tentativa de uma reforma agrária e introdução do voto feminino. Contudo, a dura oposição dos clérigos e a difícil situação econômica da maioria da população impediram que tais reformas se tornassem efetivas.

O Aiatolá Khomeini liderou os grupos de oposição e apresentou-se à população iraniana - cansada com a pobreza, a opressão do Xá e a exploração estrangeira - como aquele que libertaria o país e o conduziria rumo a uma sociedade mais justa e mais próspera. Uma vez conquistado o poder, porém, Khomeini apressou-se em livrar-se dos seus ex-aliados políticos (liberais e socialistas), e levou à presidência da república o atual Líder Supremo Ali Khamenei. No âmbito externo, as relações diplomáticas com os Estados Unidos, país que ganhou o apelido de “Grande Satã”, foram cortadas. Da mesma forma, o Irã distanciou-se de outros países ocidentais, enquanto procurava difundir, sem muito sucesso, a revolução islâmica nos países árabes vizinhos.

Quase 20 anos depois, em 1997, o reformador Mohammad Khatami conseguiu eleger-se à presidência da República Islâmica, e, pela primeira vez, desde 1979, houve uma tentativa de modernização do país. Apoiado, sobretudo pelas mulheres, jovens e intelectuais do país, que o reelegem em 2000, Khatami empenhou-se na construção de um Irã moderno. Suas tentativas, porém, não tiveram força suficiente para derrotar a oposição dos grupos conservadores que temiam perder poder. Para frear tais reformas, os clérigos muçulmanos decidiram atingir a já débil economia do país por meio de greves gerais que paralisaram o Irã. A conjuntura externa também não lhe foi favorável, pois eram os anos em que George W. Bush incluiu o Irã entre os países do assim chamado “Eixo do Mal”.

A invasão americana no Iraque foi usada pelos clérigos muçulmanos como pretexto para deslegitimar o presidente reformador. De fato, em 2005, o conservador Mahmoud Ahmadinejad, candidato dos clérigos, foi eleito presidente. De volta aos nossos dias, percebemos que os atuais protestos fazem parte de um projeto reformador já saboreado pela população iraniana. Os fundamentalistas islâmicos acreditaram tê-lo derrotado, mas num país cuja média de idade da população é de 26 anos, o desejo de liberdade e mudanças está falando mais forte que o medo da repressão.

domingo, 14 de junho de 2009

Tiananmen (Praça da Paz Celestial) – Vinte anos depois

Dia 4 de junho, completaram-se 20 anos dos protestos da Praça da Paz Celestial (em chinês Tiananmen) em Pequim. Ainda está viva na memória de muitas pessoas a incrível imagem do jovem manifestante que, sozinho, conseguiu parar os tanques do exército chinês. Aquela cena permaneceu como símbolo da luta pela liberdade contra um governo ditatorial. Ninguém sabe onde está hoje aquele jovem. Aliás, a maioria dos adolescentes chineses não sabe ou talvez não se interesse em saber o que realmente aconteceu naquele fatídico 4 de junho de 1989. Os livros escolares nem mencionam o evento, pois para o governo de Pequim essa data representa ainda um problema não resolvido, algo que é preciso esconder do mundo para não manchar sua nova imagem. Prova disso são as medidas de segurança que nesse dia foram tomadas pelas autoridades chinesas para evitar eventuais incidentes: o aumento do número dos policiais na praça, onde vinte anos atrás milhares de estudantes reuniram-se; o bloqueio dos sites que continham informações sobre os incidentes ocorridos em 4 de junho; proibição de debates sobre os motivos que provocaram os protestos e sua repressão.

O dia 4 de junho de 1989 marcou o início do choque entre o exército chinês e os estudantes. Fileiras de tanques atravessaram as artérias principais de Pequim. O confronto foi violento. Os feridos e os mortos foram contados dos dois lados, e a versão oficial do governo não coincidiu com a difundida pelos jornais estrangeiros. A Amnesty International estimou que cerca de 2 mil manifestantes foram presos, acusados de crimes contra-revolucionários. Uma primeira leitura dos acontecimentos levou a opinião pública internacional a tomar a defesa dos estudantes, considerados vítimas inocentes de um sistema autoritário que, sem nenhum escrúpulo, realizara um verdadeiro massacre. O governo chinês foi atacado e acusado de violação dos direitos humanos. Sucessivamente, outras leituras foram feitas, não isentando o Partido Comunista da acusação de ter usado indevidamente a força militar contra os jovens chineses, mas reconhecendo a complexidade dos acontecimentos.

Os combates daqueles primeiros dias de junho, expostos ao mundo inteiro, manifestaram a luta interna pelo poder que estava acontecendo no Partido Comunista entre a facção mais conservadora, que não aceitava a abertura e as reformas econômicas implantadas a partir de 1978, e o grupo progressista liderado por Deng Xiaoping, que lutava pelo fim do isolamento chinês. Os estudantes, reunidos em grupos mais ou menos organizados, eram os porta-vozes daqueles que, mesmo usufruindo de certo melhoramento de vida, enfrentavam ainda muitas dificuldades de ordem econômica e política. Os estudantes queriam abertura, igualdade, o fim dos privilégios dos que detinham o poder. A eles uniram-se outras camadas da população, que acrescentaram outras reivindicações, mais específicas. Todavia a precariedade da organização dos vários movimentos estudantis permitiu que os manifestantes fossem manipulados por correntes políticas em busca da legitimidade de uma autoridade que há tempo estava fraquejando. Provavelmente, se o Partido Comunista não estivesse passando por uma grave crise política, não teria optado pelo uso da força que, naquela conjuntura, foi identificada como única possibilidade de evitar que o partido fosse arrastado pelos combates e perdesse sua autoridade.

No dia 9 de junho, Deng Xiaoping declarou a derrota dos movimentos de protestos e convidou o país a reerguer-se, continuando sua corrida desenvolvimentista. Vinte anos depois, políticos chineses ainda afirmam que a repressão foi uma medida necessária para evitar que o país se desestabilizasse econômica e politicamente, como aconteceu na ex-União Soviética, em 1991. Nesses vinte anos, a economia chinesa fez passos de gigante, conseguindo tirar 400 milhões de chineses da linha de pobreza. O governo ampliou a democratização do próprio Partido Comunista, o que resultou na integração de setores relevantes da sociedade chinesa. Os chineses estão mais satisfeitos com seu país. Mas a China ainda precisará de muitos anos para que possa refletir serenamente e debater com liberdade sobre o que aconteceu naquele doloroso dia 4 de junho de 1989.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

A Política Externa Independente no governo de João Goulart

Jânio Quadros anunciou a renúncia ao cargo de presidente com o intuito de aumentar seus poderes, esperando que tal ato não fosse aceito. A direita civil e militar, porém, aceitou a renúncia e barrou a posse de João Goulart como novo presidente. Leonel Brizola promoveu a campanha da legalidade, que resultou no retorno de Jango, mas via parlamentarismo. Tancredo Neves foi nomeado primeiro-ministro. O presidente João Goulart tomou posse no dia 7 de setembro de 1961, já enfrentando a oposição dos grupos conservadores que - desde sua gestão como vice-presidente - consideravam sua atuação política altamente suspeita por seu envolvimento ideológico com a esquerda nacional. San Tiago Dantas foi nomeado Ministro das Relações Exteriores. Tal decisão salvou o destino da Política Externa Independente, pois o ministro Dantas conseguiu colocar em prática o discurso de autonomia ensejado pelo presidente Quadros. Apesar da resistência dos conservadores, o Ministro das Relações Exteriores empenhou-se em estabelecer um plano estratégico de atuação da PEI. Ele esquematizou as diretrizes da Política Externa Independente em cinco princípios: a) contribuição para a preservação da paz, por meio da prática da coexistência e do apoio ao desarmamento geral e progressivo; b) reafirmação e fortalecimento dos princípios de não-intervenção e autodeterminação dos povos; c) ampliação do mercado externo brasileiro mediante o desarmamento tarifário da América Latina e a intensificação das relações comerciais com todos os países, inclusive os socialistas; d) apoio à emancipação dos territórios não-autônomos, independente da forma jurídica utilizada para sua sujeição à metrópole; e) política de autoformulação dos planos de desenvolvimento econômico e de prestação e aceitação de ajuda internacional. A ampliação dos mercados internacionais foi uma das preocupações principais da PEI, para contrabalançar a necessidade de importação do país e aumentar o PIB nacional. No final de 1961, foram restabelecidas as relações diplomáticas com a União Soviética, justificando tal decisão pelo alto índice de crescimento econômico do bloco soviético, e pelas consequentes oportunidades comerciais que o restabelecimento de tais relações oportunizaria para o país. Em 1962, durante a crise de Cuba, o Brasil posicionou-se contra a possível intervenção norte-americana na ilha de Cuba, mantendo-se coerente com o princípio da PEI de defesa da não-intervenção, e por considerar indevida a ingerência de qualquer estado nos assuntos internos de outros países. Tal postura pôs em alerta o governo norte-americano, preocupado com uma possível perda de controle sobre o continente sul-americano, assim como confirmou o temor dos grupos conservadores brasileiros sobre o suposto esquerdismo do presidente Goulart. A situação de divisão interna agravou-se quando o presidencialismo foi restabelecido no Brasil, em janeiro de 1963, significando o fim das limitações de poder impostas ao presidente Goulart com o parlamentarismo. Durante este período, a política externa brasileira sofreu fortes desgastes, devido às continuas mudanças de ministro das relações exteriores. Em 1964, João Goulart aprovou a regulamentação da remessa de lucros para o exterior, enquanto o Itamaraty, que havia abandonado a PEI, renovava o Acordo Militar com os Estados Unidos. A ação do Presidente Goulart perdeu força sem o apoio nacional e internacional. O golpe de 31 de março de 1964 marcou o fim da Política Externa Independente. Os Estados Unidos foram acusados de ter ajudado os militares a derrubar o governo de João Goulart. Segundo os historiadores Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno, “os Estados Unidos não se envolveram diretamente com a elaboração do golpe de 1964, mas dele tinham conhecimento, bem como o acompanharam com óbvio interesse e simpatia e estavam preparados para um eventual apoio aos sublevados caso fosse necessário (operação Brother Sam). Além disso, acolheram o novo governo (de Castello Branco) com satisfação e inauguraram com este uma política de apoio e colaboração”.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

A Política Externa Independente no governo de Jânio Quadros

No dia 31 de janeiro de 1961, Jânio Quadros tomou posse como presidente do Brasil. Seu governo durou pouco mais de sete meses, mas, nesse breve período, o presidente Quadros colocou as bases para a implantação de uma política externa inovadora, denominada Política Externa Independente (PEI). Essa linha política apresentava-se de um lado, como a continuação e o aprofundamento do projeto nacional-desenvolvimentista inaugurado por Getúlio Vargas e, de outro, como uma proposta pioneira, sobretudo, no que dizia respeito à tradicional aliança com os Estados Unidos. Aproveitando as mudanças internacionais favoráveis à adoção de uma política externa mais autônoma em relação à potência norteamericana, Jânio Quadros procurou estabelecer relações políticas e comerciais com todos os países, inclusive os países socialistas.

Já antes de sua posse como presidente, Jânio Quadros visitou Cuba, em 1960, e, em seguida, viajou para Moscou com o intuito de restabelecer relações diplomáticas com a URSS, que haviam sito interrompidas em 1947, durante a gestão do presidente Gaspar Dutra. Jânio Quadros pertencia a um partido conservador, a União Democrática Nacional (UDN), enquanto seu vice, João Goulart, pertencia a um partido de esquerda, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). O fato de pertencer a um partido conservador permitiu ao presidente Quadros maior espaço de manobra. Ele pôde, durante sua gestão, adotar posturas diferentes no âmbito da política interna e da política externa. Com efeito, internamente, o presidente Quadros adotou uma postura predominantemente conservadora, procurando alinhar a economia brasileira aos princípios do FMI, enquanto no exterior ensejava uma administração autônoma dos Estados Unidos, o que agradava aos grupos de esquerda e aos nacionalistas.

Contudo, eram duas faces de uma única medalha, pois a PEI foi concebida justamente como instrumento para uma política de desenvolvimento nacional. Era uma experiência inédita, que dava à política externa brasileira, até então limitada a visões regionalistas, uma dimensão mundial e uma postura ativa frente às mudanças internacionais. No final dos anos 50, início dos anos 60, o cenário internacional transformou-se, favorecendo a ampliação das relações internacionais. Destacamos a recuperação econômica da Europa Ocidental e do Japão, que se apresentavam ao Brasil como possíveis alternativas comerciais; o processo de descolonização na África e na Ásia; a emergência da URSS como nova potência mundial; o surgimento do Movimento dos Países Não-Alinhados, em 1961, que sublinhava a necessidade de uma nova ordem internacional contra a divisão do mundo em dois blocos, tudo isso criou as condições necessárias para que o Brasil buscasse desenhar as linhas-guia de uma nova política externa, mais autônoma.

Em relação, por exemplo, a Portugal, aliado tradicional do Brasil, o presidente Quadros procurou afastar-se da política colonialista do presidente Salazar, passando a defender a independência das colônias africanas de Angola e Moçambique. Da mesma forma, criticou o sistema de apartheid vigente na África do Sul. No continente americano, o presidente Jânio Quadros procurou aproximar-se da Argentina, formando um movimento de resistência contra uma possível intervenção norteamericana na América Latina, em razão da Revolução Cubana. Com a atuação da PEI, o governo brasileiro procurava reagir à queda do comércio exterior, buscando novos mercados para os produtos brasileiros, sem distinguir entre mercados pertencentes a países democráticos ou socialistas.

A PEI defendia a formulação de planos de desenvolvimento econômicos que previam a aceitação de ajuda internacional desde que essa ajuda não contrastasse o desenvolvimento nacional. A defesa de uma política externa independente não agradou aos grupos conservadores brasileiros, que se assustaram com a insistência do governo de aproximar o Brasil aos países comunistas. Em 1960, Jânio Quadros enviou João Goulart, seu vice - considerado pelos conservadores um esquerdista de primeira - para uma missão comercial na China, em busca de novos mercados. No mesmo ano, Jânio Quadros condecorou, em Brasília, o ministro da economia de Cuba, Che Guevara. Tais ações agravaram a crise interna, levando à renúncia do presidente Jânio.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Bento 16 - Peregrino na Terra Santa (parte II)

Nos últimos dias de sua permanência na Terra Santa, Bento 16 teve oportunidade de encontrar e dialogar com os líderes máximos das comunidades palestina e israelense. Nos dois encontros, o papa fez questão de sublinhar qual é a posição da Santa Sé diante do conflito, ou seja, ela seria favorável à existência dos dois estados, israeliano e palestino. Desse mesmo pensamento, é o jesuíta Samir Khalil Samir, entre os mais escutados pelo Vaticano. Segundo ele, a raiz do conflito não é religiosa nem étnica, mas política. O problema - segundo Samir - remonta à criação do estado de Israel e à repartição da Palestina, em 1948.

Para remediar a injustiça contra um terço da população hebreia, com o holocausto, os governos ocidentais cometeram uma nova injustiça, dessa vez contra a população palestina, inocente em relação ao martírio dos hebreus. Bento 16, durante o encontro com o presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Abu Mazen, no Palácio Presidencial de Belém, reiterou o seu apoio ao reconhecimento de uma pátria para os palestinos: “A Santa Sé apoia o direito do povo palestino a uma pátria soberana, palestina, na terra de vossos antepassados, segura e em paz com os seus vizinhos, dentro de confins internacionalmente reconhecidos”.

Além de convidar as partes em conflito a abandonar o rancor e a escolher o caminho da reconciliação, pediu à comunidade internacional de não poupar esforços em favor de uma solução dos conflitos, da reconstrução de casas, escolas, hospitais destruídos no recente conflito na Faixa de Gaza. Em Belém, Bento 16 deparou-se com a triste realidade do Muro da Separação, uma barreira de cimento e arame farpado alta com mais de oito metros que separa a cidade de Belém da área de Jerusalém, distante apenas nove quilômetros. O muro foi construído em 2004 por Israel como medida de segurança contra os ataques palestinos a Jerusalém. Mas acabou provocando grandes perdas pelo povo palestino, não apenas do ponto de vista econômico, pelo fechamento de quase 80% do comércio e pela queda do turismo, mas, sobretudo, porque representa uma séria limitação da liberdade dos palestinos que não podem deixar a cidade sem permissão do governo de Israel.

A visita ao local foi um dos momentos mais fortes da viagem de Bento 16. Ele afirmou: “Enquanto o costeava, rezei por um futuro em que os povos da Terra possam viver juntos em paz e harmonia sem a necessidade desse tipo de instrumentos de segurança e separação, mas respeitando-se e confiando um no outro, renunciando a todo tipo de violência e agressão”. Com essas palavras, Bento 16 sublinhou, de um lado, os sofrimentos do povo palestino, mas, de outro, reconheceu a necessidade de segurança por parte de Israel, pedindo aos palestinos para rejeitar o terrorismo.

Dirigindo-se a ambas as partes, disse: “De ambos os lados do muro, é necessário grande coragem para superar o medo e a desconfiança, se deseja-se contrastar a necessidade de vingança pelas perdas e ferimentos. Ocorre magnanimidade para buscar a reconciliação após anos de conflitos armados”. Ele sublinhou que não basta abater os muros de pedra. “Antes de tudo, é necessário remover os muros que construímos ao redor dos nossos corações, as barreiras que levantamos contra o nosso próximo”. No dia seguinte, Bento 16 encontrou-se, na cidade de Nazaré, com o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, eleito no último mês de abril.

O papa conversou a sós com Netanyahu por 15 minutos, que lhe pediu para condenar as posições iranianas de negação da legitimidade do estado de Israel. O papa atendeu ao pedido israelense no último dia de sua viagem. Durante o discurso de despedida na Terra Santa, no aeroporto de Tel Aviv, ele afirmou: “Não mais efusão de sangue! Não mais conflitos! Não mais terrorismo! Não mais guerra! Rompamos antes o círculo vicioso da violência. Seja universalmente reconhecido que o estado de Israel tem o direito de existir e de usufruir da paz e da segurança dentro de confins internacionalmente reconhecidos. Seja igualmente reconhecido que o povo palestino tem o direito a uma pátria independente, soberana, direito a viver com dignidade e a viajar livremente. Que a ‘two-State solution’, a solução de dois estados, torne-se realidade e não permaneça sonho”. E concluiu com um convite: “Que a paz possa difundir-se nessas terras; que elas possam ser ‘luz para as nações’, levando esperança a muitas outras regiões atingidas por conflitos”.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Bento 16 - Peregrino na Terra Santa (parte I)

A visita de Bento 16 à Terra Santa teve início sexta-feira passada, dia 8 de maio, e terminará nesta sexta, dia 15. Nesses dias, o papa visitará os lugares santos da história do cristianismo. Na Jordânia, primeira etapa da viagem, o papa já visitou o lugar onde Jesus foi batizado, junto ao rio Jordão. No dia 11, Bento 16 deixou a capital da Jordânia, Amã, rumo a Israel, onde permanecerá até o fim da visita, passando pelas cidades de Jerusalém, Belém e Nazaré. Naturalmente, a viagem de Bento 16 não é uma simples peregrinação. Ele mesmo sublinhou - aos jornalistas que lhe perguntaram sobre o sentido e os objetivos de sua viagem - que se trata não apenas da viagem de um indivíduo, “mas de um chefe da igreja, que não é um poder político, mas uma força espiritual”.

Logo em seguida, Bento 16 evidenciou os três objetivos de sua visita: a oração, porque Deus pode mudar o curso da história se milhões de fiéis o invocam; a formação das consciências, para que os seres humanos sejam capazes de perceber a verdade, livrando-se de visões particulares e abrindo-se aos valores autênticos; e, por último, a racionalidade, porque não sendo parte política, a igreja pode refletir e aprofundar as posições mais racionais. Durante a visita em Amã, ele ainda especificou que veio “simplesmente com uma intenção e uma esperança: rezar para o dom mais precioso da unidade e da paz, mais especificadamente para o Oriente Médio”.

Em Amã, Bento 16 foi acolhido pelo rei da Jordânia, Abdullah II bin Hussein, e sua esposa, que o acompanharam durante a visita. A Jordânia é o único país do Oriente Médio onde os cristãos - que representam 2% da população - são livres de professar a sua fé, construir escolas, igrejas e universidades. Por isso, Bento 16 elogiou a política de liberdade religiosa adotada pelo rei da Jordânia, e seu importante papel de promotor da paz na região. O rei da Jordânia, por sua vez, declarou sua alegria em acolher o papa em sua terra, onde “muçulmanos e cristãos são cidadãos iguais diante da lei, todos contribuindo ao futuro do país”. Hussein sublinhou que viver em paz, confortar os pobres e desesperados, dar esperança aos jovens é o empenho do seu país e a alma de sua comunidade.

Em Amã, o papa visitou também a mesquita Al-Hussein Bin Talai, onde foi acolhido por um grupo de importantes líderes muçulmanos, entre os quais o príncipe Ghazi Bin Muhammad Bin Talai, primo do rei Abdullah. O príncipe Gazi foi o principal inspirador da carta ao papa assinada, em 2006, por 138 representantes muçulmanos de vários países que marcou o início de um diálogo profícuo entre muçulmanos e cristãos, após a polêmica lição de Bento 16 na Universidade de Ratisbona. A visita do papa à mesquita e o diálogo com os líderes islâmicos teve grande repercussão no mundo muçulmano. A etapa de Bento 16 em Israel é certamente a mais esperada e polêmica. Há o temor que esta viagem e as declarações de Bento 16 sejam instrumentalizadas politicamente pelos dois lados em conflito: árabes e judeus.

Os grupos árabes temem que a viagem de Bento 16 torne-se uma vantagem política para Israel. Mas Bento 16 surpreendeu mais uma vez, destacando-se pela originalidade e racionalidade de suas contribuições particularmente nos assuntos mais críticos e pungentes. Dois são os temas cruciais que a opinião pública esperava que Bento 16 enfrentasse em solo israelita: o tema da paz e o da segurança, após o dramático conflito de janeiro passado; e o tema da Shoah e antissemitismo, após as polêmicas declarações do bispo Williamson. Nos dois casos, ele escolheu abordar os dois temas a partir da fé e da escritura.

Ele relacionou a paz à procura de Deus, empenho que deveria ser de todos os líderes religiosos; e a segurança à palavra bíblica “batah”, que significa não apenas segurança, mas confiança: “Uma segurança duradoura é questão de confiança, alimentada na justiça e na integridade, selada pela conversão dos corações que nos obriga a olhar o outro nos olhos e a reconhecer o ‘tu’ como meu semelhante, meu irmão, minha irmã”. Durante a visita ao memorial das vítimas do Holocausto, Bento 16 lembrou o sentido de uma outra palavra bíblica: o “nome”, evidenciando como não é possível tirar o nome de nenhum ser humano, pois os nomes de todos “estão gravados de maneira indelével na memória de Deus Onipotente”.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Sujeitos importantes em forma de siglas internacionais

Algumas siglas estão se tornando mais familiares, mas, talvez, não conheçamos a origem e relevância delas no cenário internacional. Por exemplo, escutando as notícias sobre a difusão da gripe A e o risco de pandemia, recebemos diariamente orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Quando o assunto é a evolução da crise econômica mundial, lá vem a Organização Mundial do Comércio (OMC), e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Quando o assunto é desrespeito aos direitos humanos, acompanhamos os relatórios da Amnesty International, ou, em matéria de meio ambiente, as denúncias do Greenpeace ou do WWF.

Todas essas organizações internacionais estão ocupando mais espaço, atuando ao lado dos estados ou até competindo com eles, que já não são mais considerados os únicos atores internacionais. Qual a origem de tais organizações? A maior parte delas surgiu a partir da segunda metade do século 20. Todavia, já no século 19, havia notícias de formação das primeiras organizações internacionais, como a União Telegráfica Internacional, fundada em 1865, e a União Postal Universal, criada em 1874. A transformação social e econômica provocada pela Revolução Industrial contribuiu para a melhoria das comunicações, para a diminuição dos tempos de deslocamento além das fronteiras nacionais, aproximando povos e culturas e facilitando a integração e cooperação.

Durante a Primeira Guerra Mundial, com a entrada dos Estados Unidos no conflito, o cenário internacional ampliou-se mais ainda. E foi justamente dos Estados Unidos que veio a ideia de se criar uma organização que reunisse vários estados no empenho para garantir um sistema de segurança coletiva contra as eventuais ameaças à paz. O então presidente Woodraw Wilson, deu vida à Liga das Nações, germe da futura Organização das Nações Unidas (ONU), que se afirmou no Ocidente depois da Segunda Guerra Mundial.

A divisão do mundo em dois blocos, durante o período da Guerra Fria, não desencorajou o surgimento de numerosas organizações internacionais. Com o intuito de melhorar as relações entre povos e culturas, trabalhando em defesa da paz ou procurando resolver problemas sociais e econômicos, tais organizações atuam em diversos âmbitos, estruturadas em nível regional e mundial. As organizações internacionais - sejam elas inter-governamentais (OIGs) ou não-governamentais (ONGs) - podem ser definidas como a forma mais estruturada de se realizar a cooperação internacional. A diferença entre OIGs e ONGs é que as primeiras são criadas por vontade dos estados, por meio de tratados, com a finalidade de realizar interesses comuns através da cooperação permanente entre seus membros.

São OIGs, para citar os exemplos mais conhecidos, a União Europeia e a ONU, com as suas várias agências especializadas: Organização Mundial do Comércio (OMC), Organização Mundial da Saúde (OMS), Banco Mundial, FMI, Organização para Alimentação e Agricultura (FAO), Organização Internacional do Trabalho (OIT), Unesco (para a educação, ciência e cultura), Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), Unicef (para a infância). As ONGs diferem-se das OIGs por serem privadas, e não estatais. De fato, elas são criadas por grupos de cidadãos, sendo entes privados sem fins lucrativos, voltados para os direitos humanos, a proteção ambiental, a ajuda humanitária, etc.

Muitas vezes, surgem para ajudar grupos ou defender espaços que são negligenciados pelos estados. As ONGs mais conhecidas são a Cruz Vermelha, os Médicos Sem Fronteiras, além das que já citamos, como o Greenpeace, WWF, Amnesty International. São muitas as dificuldades que as organizações internacionais enfrentam para concretizar os seus objetivos. Os estados resistem à atuação das ONGs e OIGs por medo de uma concorrência que possa enfraquecer a sua soberania. O crescimento em número e força de tais organizações parece demonstrar que a cooperação internacional é um caminho sem volta.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Sri Lanka - a “pérola” do Oceano Índico

Acessando o site oficial de turismo do Sri Lanka (ex-Ceilão ou Ceylon), encontramos logo a descrição desta ilha, localizada ao sul da Índia: “Praias de areia branca, vegetação exuberante, vida selvagem surpreendente, uma herança histórica riquíssima”. E um convite caloroso: “O sorriso amigo das pessoas do Sri Lanka te esperam. Venha e experimente!”. Tal descrição não é propaganda enganosa. O Sri Lanka, uma ilha tropical belíssima, é meta turística de milhares de estrangeiros atraídos pelas suas belezas naturais e sua riqueza cultural. Contudo, o país ficou conhecido também como foco de uma guerra civil que teve início em 1983 e que, salvo alguns anos de trégua, continua até hoje.

Calcula-se que, desde o início do conflito, morreram mais de 50 mil pessoas. Os que fugiram, refugiando-se em outros países, principalmente a vizinha Índia, são mais de 100 mil. A área interessada pelo conflito situa-se na região nordeste da ilha, onde vivem 190 mil civis, na maioria pertencente à etnia tâmil, correspondente a 18% da população total. A etnia majoritária do Sri Lanka é a cingalesa (74%). O restante é muçulmano (7%) e Burghers, descendentes dos colonizadores portugueses e holandeses (1%).

O conflito entre a etnia majoritária cingalesa e a minoritária etnia dos tâmeis recrudesceu-se de tal forma nestes últimos meses que chamou a atenção mundial. O que preocupa é a situação alarmante dos sobreviventes desalojados que estão à beira da morte por não conseguirem receber as ajudas humanitárias enviadas pela ONU. O recrudescimento do conflito deve-se à decisão do governo do Sri Lanka de pôr um fim à ação violenta dos guerrilheiros rebeldes, conhecidos como Tigres de Libertação da Pátria Tâmil, que há anos, com ataques suicidas e atentados a civis e militares cingaleses, desestabilizam a vida do país. O grupo reivindica a criação de um estado Tâmil independente, proposta que foi sempre recusada pelo governo.

A rivalidade entre os cingaleses e os tâmeis originou-se no período em que a ilha tornou-se colônia da Inglaterra, no início do séc. 19, após ter sido colonizada primeiramente pelos portugueses e, depois, pelos holandeses. A ilha tornou-se, sob o domínio inglês, a maior produtora mundial de chá. Para isso, os ingleses trouxeram do sul da Índia, precisamente do estado do Tamil Nadu, milhares de operários de etnia tâmil para que trabalhassem na produção de chá. Pelos seus serviços à coroa britânica, os tâmeis receberam tratamento especial em relação ao resto da população de etnia cingalesa.

Com a independência do país, em 1948, os cingaleses criaram um governo de forte sentimento nacionalista, reacendendo as divisões étnicas e fomentando o desejo de se vingarem das humilhações e discriminações sofridas durante o período colonial, sobretudo, em relação aos tâmeis. Além de declarar, em 1965, o idioma cingalês como oficial, e o budismo como principal religião, os cingaleses procuraram excluir os tâmeis dos melhores empregos públicos e dos estudos universitários, sob pretexto de sanar a situação de desequilíbrio criada durante a dominação britânica.

Em 1972, na região nordeste do país, formaram-se os primeiros grupos rebeldes, dentre os quais ganhou força o grupo dos Tigres Tâmeis. O primeiro ataque feito pelos Tigres foi em 1983, quando 13 soldados cingaleses foram mortos por guerrilheiros tâmeis em Jaffna. O conflito continuou até 2002, quando um cessar-fogo negociado pelo governo norueguês conseguiu restabelecer um mínimo de segurança aos habitantes do Sri Lanka. Em 2005, a eleição de um líder cingalês budista reacendeu os ânimos. O presidente Mahinda Rajapaksa recusou-se a dar maior autonomia aos tâmeis, acusando-os de desrespeitarem o cessar-fogo.

O país voltou ao estado de guerra civil, e os que mais sofrem são, como sempre, os inocentes. Nos últimos três meses, foram mortas 6,5 mil pessoas no conflito. No último domingo, o grupo dos Tigres Tâmeis declarou unilateralmente o cessar-fogo. As autoridades do Sri Lanka consideram tal ato uma piada, acusando os tâmeis de usar como escudo humano os milhares de civis que vivem na região do conflito. Para o governo, a solução seria a rendição dos rebeldes. Analistas internacionais definem os guerrilheiros como terroristas e a proposta de criação de um estado independente como exagerada. Discordam da luta pela independência, mas defendem o respeito aos direitos civis das minorias.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

A Operação Pan-Americana de Juscelino Kubitschek (Parte 2)

Em 1958, JK lançou a Operação Pan-Americana (OPA), uma proposta de cooperação internacional de âmbito hemisférico que visava ao desenvolvimento econômico e político não apenas do Brasil, mas de toda América Latina, onde o sentimento antiamericano e anti-imperialista enraizava-se cada vez mais. As violentas manifestações ocorridas nas cidades de Lima e Caracas contra o vice-presidente americano, Richard Nixon, em visita, naquele ano, ao continente sul-americano, confirmaram tais sentimentos. Após o retorno de Nixon aos Estados Unidos, JK enviou uma carta ao presidente Eisenhower, apresentando a Operação Pan-Americana, primeiramente como uma tentativa de recompor a unidade continental.

JK apresentava ao presidente americano a necessidade de uma “inversão precursora nas áreas econômicas atrasadas do continente, a fim de compensar a carência de recursos financeiros internos e a escassez de capital privado. A América Latina, que também contribuiria para a vitória democrática, se viu, pouco a pouco, em situação econômica mais precária e aflitiva que as nações devastadas pela guerra, e passou a constituir o ponto mais vulnerável da grande coalizão ocidental”.

JK retomava, nestas últimas linhas, a tese já usada por Vargas de que o desenvolvimento e o fim da miséria eram as maneiras mais eficazes de se evitar a penetração de ideologias exóticas e antidemocráticas, que se apresentavam como soluções para os países atrasados. Em outro trecho, JK sublinhou o desejo do Brasil de ser protagonista do cenário mundial: “Reclamamos o direito de opinar e colaborar efetivamente, o que é imperativo de nação que se sabe adulta e deseja assumir a plenitude de suas responsabilidades em uma política que é sua”.

Diante do pedido brasileiro de maior autonomia, a primeira reação do presidente Eisenhower foi de frieza. Logo, porém, os acontecimentos internacionais o convenceram a voltar nos seus passos. Em Cuba, a guerrilha avançava. Fidel Castro estava preparando-se para conquistar a ilha, o que aconteceria pouco depois do lançamento da OPA, em 1º de janeiro de 1959, marcando o início da Revolução Cubana. Temendo a difusão da ameaça comunista na América Latina, Eisenhower mudou sua atitude em relação à proposta de JK, enviando ao Brasil seu secretário de estado, John Foster Dulles, para indagar como melhorar as relações entre norte e sul.

O primeiro resultado concreto da OPA foi a criação do BID, Banco Interamericano de Desenvolvimento, constituído por 20 países americanos, com um capital inicial de um bilhão de dólares destinados ao financiamento e à assistência técnica dos países membros. Outra iniciativa foi a criação, em 1960, da Associação Latino-Americana de Livre Comércio, com a assinatura do Tratado de Montevidéu, pelo Brasil, Argentina, Chile, México, Paraguai, Peru e Uruguai. Contudo, além destes primeiros resultados, a OPA não conseguiu avançar como esperado.

As promessas norte-americanas não foram mantidas. JK, em ulterior tentativa de chamar a atenção dos Estados Unidos, buscou ampliar suas relações com a área socialista e os países emergentes do Terceiro Mundo, mas o fez de forma tímida, pois não queria confrontar-se, de fato, com os Estados Unidos. A OPA foi mais um instrumento de pressão, de barganha nacionalista à maneira de Vargas do que uma verdadeira busca de multilateralização. Ele ainda estava ideologicamente muito ligado ao bloco ocidental para querer adotar uma política de verdadeira autonomia em fato de política externa.

A tentativa, por parte dos Estados Unidos, de isolar Cuba no seu contexto regional, deixou JK em uma posição complicada. Ele não ousou contrariar explicitamente o governo norte-americano, preferindo adotar medidas ambíguas que apenas protelassem uma resolução adequada. A situação de JK ficou ainda mais complicada diante da atitude do candidato à presidência da república, Jânio Quadros, de aberta oposição à timidez política de JK. Já antes de ser eleito, Jânio mostrou-se defensor de uma maior autonomia em fato de política externa, visitando Cuba em março de 1960 e, depois, conversando longamente com Krushov em uma sua viagem internacional a Moscou.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

G-20 - embrião de uma nova governança mundial

Realizou-se na quinta-feira passada, dia 2 de abril, em Londres, a tão esperada reunião do G-20. O grupo reúne os países do G-8 (Estados Unidos, Japão, Alemanha, França, Reino Unido, Canadá, Itália e Rússia), a União Europeia e mais 11 nações emergentes (África do Sul, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, China, Coréia do Sul, Índia, Indonésia, México e Turquia). Juntos, estes países representam cerca de 90% da riqueza produzida no planeta, dois terços da população mundial e, também, 80% da emissão de gases poluentes.

Inicialmente, as previsões sobre os resultados do encontro não eram das mais róseas, considerada a existência, entre os participantes, de duas orientações opostas. De um lado, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, que defendiam intervenções imediatistas e eficazes para a repartida da economia; de outro, a França e a Alemanha, pedindo regras mais severas que permitissem redesenhar o sistema financeiro internacional. Nicolas Sarkozy, na véspera do encontro, ameaçou até deixar o vértice se não fosse reconhecida unanimemente a necessidade de definir novas regras para reformar o sistema financeiro, sobretudo, em relação aos paraísos fiscais. Apesar das primeiras desavenças, os participantes do G-20 conseguiram - como Obama desejou na véspera do encontro - concentrar-se nos pontos em comum mais do que nas divergências.

Entre as medidas mais relevantes apresentadas na declaração conclusiva do vértice do G-20, estão: o aumento de recursos para o Fundo Monetário Internacional (FMI); novas regras para os mercados financeiros e sanções para os paraísos fiscais. Com efeito, foi apresentado um programa de 1,1 trilhão de dólares para estimular o crédito, crescimento e emprego podendo chegar à soma de 5 trilhões de dólares até 2010. Foi previsto, também, o aumento de recursos do FMI para um total de 750 bilhões de dólares aos quais se acrescenta a injeção de 250 bilhões para financiar o comércio mundial.

As reivindicações de Sarkozy e Merkel encontraram uma resposta na aprovação de novas regras de supervisão financeira, reforçando a coerência das regulamentações financeiras nacionais, os critérios financeiros internacionais e desencorajando a tomada de riscos excessivos. Uma outra medida significativa, que venceu a resistência de alguns dos integrantes do G-20, foi a decisão de agir contra os paraísos fiscais. A declaração final do vértice fala do “fim da era do segredo bancário”. O combate das medidas protecionistas como meio de reagir à crise econômica também foi um dos pontos altos da reunião. Os participantes concordaram em impedir o surgimento de novas barreiras protecionistas até o final de 2010.

A luta contra medidas protecionistas foi uma das maiores reivindicações do Brasil, país emergente que, apesar da crise, não cedeu à tentação de usar medidas protecionistas. Aliás, o Brasil desempenhou um papel significativo dentro do G-20, reconfirmando não apenas sua liderança frente ao bloco regional latino-americano, mas, também, destacando-se como “porta-voz” dos países emergentes. Segundo Carlos Langoni, ex-presidente do Banco Central e diretor do Centro de Economia Mundial Getúlio Vargas, “a imagem e a credibilidade do Brasil saíram muito fortalecidas do encontro de Londres. Lula mostrou ao mundo que é popular sem ser populista, o que é raro na América Latina”, concluiu Langoni.

Em última análise, o G-20 pode ser considerado um passo rumo a uma maior governança mundial. O tempo do G-8 acabou. O G-20, junto com a Espanha e a Comissão Europeia, formará o Conselho de Estabilidade Financeira e colaborará com o FMI na detecção de riscos no sistema financeiro. Todos os instrumentos financeiros ficarão sob a supervisão destes países. Existem, portanto, as premissas necessárias para que o planeta caminhe rumo a uma nova ordem internacional. Contudo, além de concretizar as medidas apresentadas, será necessário ampliar ainda mais o G-20, convidando também os países pobres, grandes ausentes do vértice de Londres. De fato, com exceção da África do Sul, nenhum outro país africano estava presente. O G-20, hoje, é, por enquanto, apenas uma reunião informal, mas, se o grupo for institucionalizado e receber os devidos instrumentos políticos e jurídicos, poderá tornar-se o embrião de uma nova governança mundial.