quarta-feira, 24 de setembro de 2008

A ONU, os direitos humanos e a jornada internacional da paz

No último domingo, dia 21 de setembro, festejamos a Jornada Internacional da Paz, instituída oficialmente pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas em 2001. Ao instituir esta comemoração, a Assembléia Geral da ONU declarou que a Jornada seria observada como uma jornada mundial de cessar-fogo e de não-violência, durante a qual todas as nações e povos da terra estariam convidados a cessar as hostilidades. A Jornada Internacional da Paz adquiriu, neste ano, um significado particular, pois se comemoram também o 60º aniversário da Declaração dos Direitos Humanos e o 60º aniversário das operações de manutenção da paz. A Jornada Internacional da Paz deste ano teve como tema justamente as relações entre a paz e os direitos humanos, temas inseparáveis na atual situação internacional. O Secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, na sua mensagem em ocasião da Jornada Internacional, sublinhou o quanto o respeito dos direitos humanos seja essencial para a manutenção da paz. Infelizmente ainda há muitas pessoas que sofrem demais com a violação dos direitos humanos, sobretudo durante os conflitos armados.

Nestes dias, encontra-se reunida, em Nova York, a 63ª sessão anual da Assembléia Geral da ONU. No seu discurso de abertura da Assembléia, o presidente de turno, o nicaragüense Miguel D’Escoto Brockmann, ex-chanceler sandinista, pediu urgentemente a democratização das Nações Unidas e anunciou planos para revitalizar o poder desta Assembléia que reúne 192 nações. Tal pedido recebeu o apoio unânime dos membros da Assembléia, pois há anos discute-se a urgência de uma reforma da ONU, cuja estrutura, principalmente no que diz respeito ao seu Conselho de Segurança, não responde mais às necessidades do atual contexto internacional. A maior queixa dirigida à ONU é a falta de representatividade. Ela funciona com a mesma estrutura criada em 1945, após a Segunda Guerra Mundial. Nestes 63 anos, porém, o contexto internacional mudou e muito. Inúmeras nações, que naquela época estavam ainda sob o jugo colonial, conquistaram sua independência; terminou o bipolarismo que caracterizou a época da Guerra Fria e que dividia o mundo em dois blocos. Hoje os atores internacionais não são somente os Estados, há outros protagonistas no cenário internacional: organizações das sociedades civis, forças sociais e econômicas que não têm voz neste organismo de fundamental importância para a manutenção da paz mundial. A Organização das Nações Unidas está nas mãos de apenas 5 membros permanentes que detêm poder de veto (Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, China e Federação Russa) e que, ao mesmo tempo, estão entre os maiores produtores de armas. Seus interesses econômicos e geopolíticos condicionam a “neutralidade” na resolução de conflitos com outros países, impedindo a realização daquela que deveria ser a primeira tarefa desta Organização: a promoção dos direitos humanos.

Em 2001, quando os Estados Unidos invadiram arbitrariamente o Iraque, a ONU viveu sua maior crise de legitimidade. Parecia ter seus dias contados. Em sua defesa, ergueu-se o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello. Mesmo reconhecendo a fraqueza da Organização pela qual trabalhava há mais de 30 anos, Sérgio lembrou a todos que a ONU permanecia o único instrumento capaz de re-introduzir normas de moralidade política no curso da história. Era necessária, segundo ele, a aplicação do Direito não somente no âmbito doméstico como também no internacional. Sérgio de Mello indicou os Estados como os principais responsáveis pela defesa dos direitos humanos, afirmando a necessidade de se colocar de uma vez por todas as pessoas no centro das atenções e preocupações da comunidade internacional. Os Estados teriam como obrigação resolver suas controvérsias de forma pacífica, de maneira a não ameaçar a paz e segurança internacionais. Tal é também o parecer do papa Bento XVI que, no dia 24 de agosto, após a eclosão da crise no Cáucaso, indicou “a força moral do direito” como caminho para “dirimir as controvérsias”.

Quando a ONU conseguir representar os interesses de todos os povos da terra, ela terá condições de desempenhar o papel pensado para ela por Sérgio Vieira de Mello: o de ser a voz da consciência do mundo.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Crise na Bolívia - do separatismo ao diálogo nacional

A Bolívia, um dos países mais pobres da América Latina, está enfrentando há algumas semanas uma grave crise interna, que causou a morte de mais de 30 pessoas. Crises desta natureza não são novidade na Bolívia. O país tem uma longa tradição de instabilidade governativa. Desde sua independência da Espanha, ocorrida em 1825, até o fim da última ditadura militar, em 1982, o país enfrentou 193 golpes de estado.

A Bolívia sempre sofreu com um nível de desigualdade muito alto. A pobreza atinge, sobretudo, as populações indígenas, enquanto a minoria branca - que constitui a elite empresarial - detém o monopólio das riquezas naturais da Bolívia. Esta rivalidade entre as populações indígenas e a minoria branca remonta à época do domínio espanhol quando a maioria da população autóctone foi reduzida ao estado de escravidão ou obrigada a trabalhar como mão-de-obra barata. Ao longo de sua história, novos dominadores estrangeiros ocuparam o lugar dos espanhóis em terras bolivianas: atualmente são as empresas multinacionais que desfrutam da riqueza natural do território, principalmente petróleo e gás natural, recursos localizados na região oriental do país, chamada de meia-lua pela sua configuração geográfica.

A economia boliviana cresceu somente em um lado do país, deixando o outro sem recursos e fontes de sustento. Com efeito, em 1990, o governo do presidente Sanchez de Lozada decidiu fechar as minas do país e colocou fortes restrições ao cultivo da coca, seguindo indicações norte-americanas. Na época do estabelecimento da democracia, o país aproximou-se dos Estados Unidos, que fizeram da Bolívia uma de suas bases na América Latina. A situação mudou, porém, com a chegada de Evo Morales - o primeiro presidente índio, de etnia aymara. Desde o início de seu governo, o principal objetivo de Morales foi lutar pela nacionalização dos recursos energéticos do país e, consequentemente, pela defesa dos direitos das populações indígenas que, até então, não puderam beneficiar-se das riquezas naturais do seu próprio país.

As manifestações violentas destas últimas semanas foram sinais da forte oposição da elite empresarial às tentativas de Morales de redistribuição da riqueza. Os governadores das províncias rebeldes, que reclamam a autonomia administrativa do governo central, indicaram como principais motivos dos protestos a rejeição do aumento dos impostos sobre os hidrocarbonetos, em favor de um projeto social do governo central, e a recusa de uma nova Constituição que, segundo os governadores oposicionistas, teria sido elaborada pela Assembléia Constituinte sem a presença de representantes de suas províncias.

Tal Constituição – que deverá ainda ser aprovada por referendum popular – prevê maior autonomia das populações indígenas e mais poder para os movimentos sociais. A Constituição prevê também a redução das propriedades fundiárias que estão localizadas principalmente nas províncias oposicionistas. Diante de tal perspectiva, as províncias que possuem já um poder econômico invejável tentaram agregar também poder político, o que lhes facilitaria para salvaguardar seus interesses econômicos. A província de Santa Cruz de la Sierra, onde há forte oposição, detém 1/3 do PIB boliviano, gerando 40% dos impostos arrecadados pelo Estado. O preconceito étnico, os interesses econômicos e políticos, nacionais e internacionais arriscam manter a Bolívia numa situação de instabilidade política que impede seu crescimento econômico e social.

Os efeitos da atual crise atingiram também o âmbito internacional, pela ruptura das relações diplomáticas com o governo dos Estados Unidos, acusado de fomentar a divisão entre as regiões mais desenvolvidas e o governo central. O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, quis imediatamente demonstrar sua solidariedade ao presidente Morales, expulsando o embaixador americano na Venezuela e oferecendo ajuda militar ao país vizinho. Evo Morales, porém, recusou tal ajuda e preferiu escolher a estrada do diálogo com os governadores das províncias oposicionistas. Nesta segunda-feira, maravilhou-se em receber o apoio de todos os países integrantes da Unasul, que condenaram as manifestações violentas e reconheceram a integridade do território boliviano. Tomara que a opção de Morales pelo diálogo e o apoio da Unasul convençam as províncias da meia-lua a trocar o estéril separatismo pelo crescimento para todos os bolivianos, de todas as raças.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Eleições no Paquistão

O vencedor da corrida presidencial no Paquistão, nas eleições deste sábado, dia 6 de setembro, foi Asif Ali Zardari, líder do Partido do Povo do Paquistão (PPP) e viúvo de Benazir Buttho, mulher-símbolo do sonho democrático paquistanês, assassinada em um atentado terrorista em dezembro do ano passado. Zardari derrotou Saeed Zaman Siddiqui, o candidato de Nawaz Sharif, ex-premiê e líder do segundo maior partido no Paquistão (Liga Muçulmana do Paquistão Nawaz Pal-N). No início do ano, os dois maiores partidos do país, o PPP e o Pal-N decidiram coligar-se para preparar o impeachment contra o então presidente Musharraf, acusado de violação à Constituição. No mês de agosto, Musharraf decidiu renunciar para evitar o impeachment. A coligação entre os dois partidos teve vida curta, devido, sobretudo, à rivalidade e desconfiança existentes entre as duas correntes políticas. Nawaz Shafir, que decidiu romper a coligação, acusou Zardari de não ter respeitado as promessas feitas, especialmente em relação à reintegração dos juízes que foram afastados durante o governo de Musharraf. O governo de Zardari não começa bem. Sobre ele, gravam sérias acusações de atos de corrupção que teriam acontecido durante os dois governos de sua esposa, quando ele foi ministro por duas vezes. O apelido pelo qual é conhecido, “Senhor 10%”, não deixa dúvidas quanto à sua fama junto à população paquistanês. Além disso, ele foi acusado de ter matado o irmão de sua esposa. Zardari foi preso por mais de dez anos, mas nunca foi condenado. Após ter sido libertado, em 2004, refugiou-se nos Estados Unidos, longe da esposa, sob alegação de tratamento médico. Voltou ao Paquistão com sua esposa Benazir, em 2007, quando Musharraf cancelou, com uma anistia, todos os crimes cometidos por políticos e burocratas de 1988 a 1999. Os dois, porém, não voltaram ao mesmo tempo. O entourage de Benazir aconselhou-a a voltar sozinha, pois o fato do esposo ser uma pessoa bastante contestada no país, poderia, de certa forma, ofuscar o esperado retorno da tão amada líder do país. A própria Benazir não avaliava positivamente o papel político do esposo, pois no seu testamento deixou como herdeiro e sucessor de seu legado político não o esposo, mas o filho Bilawal, hoje com 19 anos. A prematura morte de Benazir, porém, mudou, ao menos por enquanto, o destino de Zardari, que sempre permaneceu à sombra de sua esposa. Logo após a morte de Benazir, Zardari impôs-se como co-presidente, ao lado do filho Bilawal, do Partido do Povo do Paquistão. Quando o filho, Bilawal, decidiu voltar a estudar Direito em Oxford, Zardari completou a sua ascensão ao poder até chegar à eleição. A sua campanha eleitoral, naturalmente, apoiou-se fundamentalmente no legado de Benazir, que permanece como símbolo inconteste do sonho de democracia do povo paquistanês. Ele promete realizar esse sonho, que foi o motivo propulsor pelo qual, em 1967, o pai de Benazir, Zulfikar Ali Buttho, fundou o Partido do Povo do Paquistão. Por tal causa, pai e filha derramaram o sangue. Desde a proclamação de sua independência, em 1947, o Paquistão é cenário de guerra civil. Somente nos últimos 12 meses, os ataques terroristas provocaram 1,2 mil mortos. O mesmo Zardari escapou de um atentado na última semana. Os desafios que ele deverá enfrentar são extremamente complexos: a crise econômica que mantém o país em uma situação de extrema pobreza; a relação instável e perigosa com o poder militar, protagonista na história paquistanês de golpes de estado e reviravoltas políticas; a rivalidade constante com o Pal-N; e, por último, mas não menos importante, a relação conflituosa do governo paquistanês com os extremistas islâmicos. Os seus líderes já demonstraram, por meio de um atentado no dia do resultado das eleições, de não apreciar tal resultado. Com efeito, Zardari confirmou seu papel de interlocutor do governo americano na luta contra o terrorismo, decepcionando o sentimento antiamericano dos extremistas islâmicos. Após os atentados de 2001, contra as Torres Gêmeas, o Paquistão - tradicional aliado dos Estados Unidos durante a Guerra Fria - voltou a ser um elemento estratégico na política antiterrorista americana. A presença dos contingentes estadunidenses não ajudará certamente Zardari na sua promessa ao povo paquistanês de um futuro de paz e estabilidade política.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

A ditadura das castas

No dia 29 de agosto, as 25 mil escolas católicas da Índia fecharam por 24 horas em protesto contra a onda de violência que envolveu, nas últimas semanas, a população cristã e seus missionários, no Estado de Orissa, situado no leste da República Indiana, junto ao Golfo de Bengala. Igrejas, hospitais e orfanatos cristãos foram destruídos, missionários foram espancados, uma moça que trabalhava num orfanato cristão foi queimada viva. Um padre e uma religiosa, após serem agredidos, foram desnudados e feitos desfilar diante do povo. Mais de 8.000 pessoas tiveram suas casas queimadas. Os autores de tal barbárie são membros de uma organização fundamentalista hindu (Vishwa Hindu Parishad).

Já no ano passado, na véspera do Natal, membros desta organização, liderada por Swami Laxmanananda Saraswati, atacaram uma comunidade cristã. Oito meses após o ataque, no dia 23 de agosto deste ano, o líder hindu foi assassinado por grupos maoístas, na véspera da recorrência do nascimento de Krishna. Os fundamentalistas usaram a morte de seu líder como pretexto para culpar os cristãos, acusando-os de ter se vingado pelo ataque do ano passado. Em seguida, os extremistas hindus atacaram simultaneamente 35 centros cristãos do Estado de Orissa. A polícia não conseguiu conter os atos de violência. O governo do Estado é formado por uma coligação sustentada pelo partido fundamentalista hindu.

Atualmente, a Índia é considerada a maior democracia do mundo. O país oferece centro de excelência na área de tecnologia de informação, exportando seus engenheiros ao mundo inteiro. Porém, o progresso tecnológico e político não conseguiu livrá-la de uma corrupção galopante que se alastra em todo seu território, e que mantém impunes graves atos de violência como os que aconteceram em Orissa.

Na Índia, a modernidade convive com o sistema milenar das castas, que impede a maioria dos indianos de melhorar as próprias condições de vida. A discriminação de casta é proibida pela Constituição, mas rege a vida de 80% de sua população. Cada casta vive separada das outras. O membro de uma casta é definido pelo nascimento. Não se pode mudar de casta ou subir na escala social. Quem rompe tais regras é banido de seu grupo e perde o direito ao trabalho. Quatro eram as castas tradicionais: a casta alta, constituída pelos sacerdotes (brâmanes); a casta constituída pelos guerreiros, que se ocupavam da segurança do povo (kshatriyas); a dos comerciantes (vaishyas); e, por último, a casta formada pelos agricultores (sudras). Além do sistema de divisão da sociedade hinduísta em castas, há, também, os fora da casta (os excluídos) considerados impuros, chamados também de Dalit, e os tribais ou Advasi, ambos usados como escravos pelas castas nobres.

A população do estado de Orissa é constituída por 40% de tribais e Dalit, razão que explica o fato de Orissa ser um dos estados mais subdesenvolvidos da Índia. As comunidades cristãs, nestes últimos anos, ocuparam-se justamente daqueles que os hinduístas consideram impuros e, por isso, nem podem ser tocados. Ofereceram-lhes educação, ajudando-os a reencontrar sua dignidade e suas potencialidades. Graças a esta ajuda, eles começaram a reivindicar seus direitos, recusando a exploração e a opressão econômica e social das castas mais altas. De fato, em todas as localidades de Orissa onde estão presentes instituições cristãs, nos últimos anos foi registrado certo progresso socioeconômico, mudanças sociais recusadas pelo sistema cristalizado das castas hinduístas. Os cristãos foram acusados de usar meios fraudulentos para conseguir prosélitos e convencer os habitantes da região a se converter. Na realidade, as conversões foram poucas. O número de cristãos é inferior a 1% da população de Orissa. Mas eles precisam encontrar desculpas para combater o que mais incomoda os fundamentalistas hindus: a perda do controle sobre o sistema milenar de castas. Nos últimos anos, o grupo dos fanáticos e dos intolerantes hindus parece estar ganhando força no território indiano. Contudo, muitas pessoas, não somente cristãs, mas também de outras religiões - budistas, muçulmanos, e, também, grupos hinduístas que não compartilham o fanatismo e a intolerância dos seus correligionários -, demonstraram solidariedade e apoio às vitimas cristãs. Se alguma culpa os cristãos tiveram, foi somente aquela de ter devolvido um pouco de esperança aos que não tinham mais esperança, ajudando-os, após tanto sofrimento e opressão, a enxergar uma luz de igualdade no fim do túnel.