quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Olimpíadas de Pequim - a China ganhou muito mais que medalhas de ouro

Concluiu-se, no domingo passado, a XXIX edição das Olimpíadas, sediada em Pequim.
Hospedar este evento assumiu, para a China, um significado que ultrapassou as fronteiras esportivas. Por meio dos Jogos Olímpicos, a China pôde celebrar triunfalmente a sua entrada no concerto das nações. A cerimônia de abertura constituiu o bilhete de visita oferecido em grande estilo ao mundo. E que estilo! Dificilmente outras nações poderão igualar o espetáculo que, no dia 8 de agosto, encantou o mundo. A harmonia de cores e formas, a disciplina dos milhares de integrantes das coreografias que lembravam os momentos mais importantes da história milenar chinesa, deixou em quem assistia a sensação de estar diante de um show inimitável. Estavam presentes quase todos os presidentes e primeiros ministros dos Estados participantes dos Jogos Olímpicos e tal presença para o governo chinês foi uma das principais vitórias: o reconhecimento internacional por excelência.

A China também saiu vitoriosa na conquista das medalhas de ouro. Foram 51 medalhas de ouro contra as 36 americanas. Ela conseguiu, portanto, afirmar-se também como superpotência esportiva.

Na cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos, o presidente da China, Hu Jintao estava satisfeito. A missão de demonstrar ao mundo o valor da China estava cumprida. No seu discurso de agradecimento, Hu Jintao exaltou os princípios destes Jogos: o espírito de amizade, de solidariedade e de paz. Ele sublinhou a importância da compreensão mútua e o valor da amizade que une o povo chinês e os outros povos da terra.

Contudo, estas Olimpíadas ganharam também o primado em críticas e manifestações públicas de reprovação por parte da opinião pública internacional. Os protestos pró-Tibete e os atentados terroristas na província muçulmana de Xinjiang representaram humilhantes espinhos para o governo chinês. A opinião pública internacional esperava que estes Jogos trouxessem um melhoramento no respeito dos direitos humanos por parte do governo chinês. Deste ponto de vista, os Jogos Olímpicos foram uma decepção. A máquina de férreo controle das autoridades chinesas funcionou de forma capilar e sem tréguas. O governo chinês não podia permitir que nada estragasse o objetivo mais importante deste evento mundial tão longamente esperado.

Após o humilhante período do colonialismo europeu, durante o qual a China sofreu contínuos ataques à sua soberania por parte das potências ocidentais que a invadiram e a exploraram economicamente, agora a China podia se colocar no mesmo nível das outras nações. Talvez, para nós ocidentais, acostumados a uma tradição de liberdade de expressão, de natural prioridade do individual em relação ao coletivo, resulte difícil entender o sacrifício dos cidadãos chineses em prol da nação chinesa. Não quero assim justificar as repressões das manifestações de protestos, nem as escolhas arbitrárias do governo chinês para que tudo, nesses Jogos, estivesse perfeito. Fez a volta ao mundo, logo após a cerimônia de abertura, a notícia da substituição da menina (cantora) dos dentes tortos por uma menina esteticamente perfeita que simplesmente abria a boca sem emitir um único som, enquanto a voz celestial da menina dos dentes tortos ecoava pelo estádio. A China foi acusada de falsidade, de esconder o que é ruim, por trás de imagens aparentemente perfeitas. Tudo isto é verdade. A China é o país das contradições. Mas existe um país no mundo onde não há contradições? Considero naturalmente justo fazer pressões para que a situação de milhares de chineses melhore, mas me pergunto se essas críticas e pressões internacionais são sempre verdadeiramente altruístas ou escondem objetivos de interesse político-econômico?

Estas Olimpíadas uniram o povo chinês e alimentaram, como não acontecia há décadas, seu espírito nacionalista. Uma pesquisa americana revelou que os chineses são o povo mais satisfeito da própria evolução. Com 86% de otimistas, mantém o mais alto índice de confiança do planeta. Certamente estes Jogos ajudaram, pelo menos, a atingir esta meta.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Sérgio Vieira de Mello - o intelectual orgânico das relações internacionais

Recorreu ontem, 19 de agosto, o 5º aniversário da morte de Sérgio Vieira de Mello, diplomata brasileiro morto com outros 21 funcionários das Nações Unidas durante um atentado terrorista contra a sede da ONU, em Bagdá, no Iraque. Nascido no Rio de Janeiro, filho de diplomata, estudou filosofia em Paris. Aos 21 anos, já trabalhava na ONU. Durante os 33 anos como funcionário das Nações Unidas, atuou principalmente junto ao Alto Comissariado para os refugiados da ONU, em Genebra, na Suíça. Participou de operações humanitárias em países marcados per graves conflitos, como Sudão, Bangladesh, Chipre, Moçambique e Peru. Nos anos 80, o reconhecimento oficial do seu brilhante serviço diplomático e humanitário veio por meio da nomeação a conselheiro político sênior das forças da ONU no Líbano. Nos anos 90, trabalhou com os refugiados do Camboja. Em 1999, Sérgio foi enviado ao Kosovo, onde assumiu a função de representante especial do secretário geral da ONU. Na mesma função, trabalhou para a resolução do conflito no Timor Leste, ajudando, sempre em cooperação com o povo timorense, a construir as bases do novo estado e promover o retorno de milhares de refugiados. Permaneceu no país até 2002, quando o Timor Leste proclamou sua independência. Naquele ano, foi nomeado alto comissário de direitos humanos da ONU. Em 2003, porém, afastou-se desta função para atuar como representante especial do secretário-geral da ONU, no Iraque, no contexto da invasão americana ao país. Objetivo da missão da ONU era trabalhar para restabelecer a paz e ajudar o país a construir um governo democrático após o fim do conflito. Mesmo percebendo que esta missão teria sido particularmente difícil, Sérgio Vieira de Mello aceitou o desafio. Contudo, seu serviço no Iraque durou somente quatro meses. O atentado do dia 19 de agosto de 2003 colocou fim a uma vida de dedicação em prol da paz e da solidariedade humana. Pelas peculiaridades de sua atuação internacional, Sérgio Vieira de Mello pode ser definido como um intelectual orgânico das relações internacionais. O conceito de intelectual orgânico surgiu nas primeiras décadas do século 20, por meio de Antonio Gramsci, escritor, jornalista e político italiano perseguido e morto pela ditadura fascista. No intuito de definir qual deveria ser o papel dos intelectuais na sociedade, Gramsci identificou dois tipos de intelectuais: o primeiro era constituído pelos intelectuais tradicionais, entendidos como grupo autônomo e independente, distante das massas populares. O segundo tipo, cuja atuação ele defendia, eram os intelectuais cuja atividade e pensamento entrelaçava-se com o grupo social ao qual pertenciam. O adjetivo orgânico era devido ao fato de considerar tais intelectuais como parte de um organismo vivo, a sociedade onde viviam. Eram, portanto, não mais intelectuais relegados a uma elite isolada, mas intrinsecamente ligados às organizações políticas, culturais e sociais do seu tempo. Tais intelectuais deviam ser - segundo Gramsci - construtores, organizadores e educadores permanentes das massas populares, interligando sua ação política com seus conhecimentos. Sergio Vieira de Mello mergulhou de corpo e alma no seu trabalho, trocando a comodidade de um lugar seguro e burocrático pelo campo de batalha de países e populações devastadas pelo conflito e pela violência. Inspirado nos princípios filosóficos de Kant, Sergio Vieira de Mello acreditava na possibilidade do fim dos conflitos por meio da adoção de um direito cosmopolita regulador das relações internacionais. Colocou a serviço da comunidade internacional as suas habilidades de negociador, tentando dialogar também com os ditadores. Mesmo tendo consciência da fragilidade da organização pela qual trabalhava, procurou atuar, de forma realista, mas incisiva, pela defesa dos valores de relações internacionais marcadas pelo respeito e pela solidariedade. Segundo seus colegas de trabalho, Sérgio atuava uma “diplomacia silenciosa”, longe dos holofotes. O seu objetivo foi sempre aquele de trabalhar para construir bases sólidas de segurança global. Como intelectual orgânico, Sérgio Vieira de Mello foi protagonista ativo de sua história e da de muitos povos, ao qual ele dedicou, com generosidade e inteligência, a sua própria vida.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Raízes do conflito Geórgia-Rússia

No final da semana passada, enquanto a atenção mundial estava voltada à abertura espetacular dos Jogos Olímpicos de Pequim, em uma pequena região do Cáucaso eclodia mais um conflito regional. Tropas do exército da Geórgia invadiram o território da região autônoma da Ossétia do Sul - caracterizado por separatismos anti-georgianos - provocando a reação militar da vizinha Rússia. A região autônoma é ocupada por etnia filo-russa que representa 70% de sua população. Os 30% restantes são georgianos. Em 1991, a Ossétia do Sul já fora cenário de guerra civil. No ano seguinte, a região proclamou a própria independência da Geórgia. Contudo, tal ato unilateral não foi reconhecido por nenhum membro da comunidade internacional. Desde então, a população ossetiana do sul quer unir-se à vizinha Ossétia do Norte, que pertence à Federação Russa. A Geórgia tem no seu território outras duas minorias étnicas filo-russas, nas regiões de Adjária e de Abkházia. Os habitantes das três regiões autônomas são culturalmente mais próximos à Rússia que à Geórgia. Com a Rússia, eles compartilham o idioma, o estilo de vida, tanto que receberam o passaporte russo e, conseqüentemente, o direito de voto nas eleições da Rússia. Poderíamos nos perguntar, então, porque eles não pertencem à Federação Russa? Para entender melhor a raiz do problema, ocorre voltar aos anos 20, na época do governo de Stalin. Ele planejava a construção de uma federação, liderada pela Rússia. Segundo seu projeto, a federação seria formada por Rússia, Ucrânia, Bielorússia e a região do Cáucaso (entre os países do Cáucaso estava a Geórgia, sua terra natal). Stalin considerava fundamental, para manter a liderança russa, a existência de conflitos étnicos nas próprias repúblicas integrantes da federação. Os conflitos étnicos dariam legitimidade ao governo centralizador de Moscou de intervir, inclusive militarmente, para defender os próprios interesses. Por tal motivo, em 1921, quando Stalin invadiu a Geórgia, ele anexou ao país invadido a Ossétia do Sul e a Abkházia, cujas populações odiavam os georgianos. Com a desintegração da URSS, as fronteiras já existentes foram respeitadas, sem levar em conta a vontade das populações. A Geórgia tornou-se uma nação independente. Nos primeiros anos, após a dissolução da União Soviética, ela foi liderada por um presidente de direita e extremamente nacionalista, que afastou o país da Rússia, recusando-se a integrar na Comunidade de Estados Independentes (CEI), liderada por Moscou e formada por ex-repúblicas soviéticas.

Durante a década de 1990, após o fim da guerra civil, a situação se manteve estável. A Rússia atravessava sérios problemas econômicos e políticos e, por isso, dedicou mais atenção à política interna que à externa. Todavia, com a eleição de Vladimir Putin, em 2000, a situação mudou. O presidente Putin lutou pela reafirmação da Rússia como potência regional forte e estável, reforçando sua influência política nos países vizinhos, e despertando, com isso, tensões que pareciam adormecidas. O apoio às minorias étnicas filo-russas foi parte do planejamento político de Putin. A situação na Geórgia agravou-se com a eleição do presidente Mikhail Saakashvili, em 2004. Saakashvili, logo após sua eleição, deixou claro que o seu objetivo era restabelecer o controle total de seu governo sobre as regiões separatistas da Ossétia dos Sul e da Abkházia. Ao mesmo tempo, ele manifestou o desejo que a Geórgia passasse a fazer parte da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), pedindo aos Estados Unidos ajuda para modernizar suas tropas. Naturalmente, os Estados Unidos acolheram imediatamente o convite georgiano, enviando mais de mil militares americanos que, no contexto da guerra ao terrorismo, estabeleceram-se no território georgiano. A presença e o apoio americano à Geórgia agravaram a sensação de perigo por parte da Rússia de se ver cercada por forças americanas já presentes na Ucrânia. Além disso, no território da Geórgia passam os oleodutos e gasodutos para o Ocidente, o que tornou este país filo-ocidental um país estrategicamente importante. A Rússia manifestou várias vezes sua oposição à expansão da OTAN rumo ao seu território. Talvez seja por isso que reagiu com tanta dureza à invasão georgiana da Ossétia do Sul, território sob sua proteção mais moral do que militar. Certamente, num conflito, as responsabilidades nunca estão de um lado só, mas, neste caso, os analistas internacionais estão de acordo em afirmar que Saakashvili errou os cálculos. A Rússia deixou claro que não abandonará os ossetianos filo-russos. Nas Olimpíadas, o abraço, no pódio, entre uma atleta georgiana e uma atleta russa, no último domingo, pareceu-me um sinal de esperança para a resolução definitiva do conflito.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Alexander Solzhenitsyn: a voz da consciência russa

No domingo passado, morreu Alexander Solzhenitsyn, um dos maiores escritores do século XX. Solzhenitsyn nasceu em 11 de dezembro de 1918 na pequena cidade de Kislovodsk, na região do Cáucaso, localizada na então União Soviética. Seu pai morreu durante a guerra, seis meses antes de ele nascer. Desde sua adolescência, manifestou vontade de se tornar escritor. Na cidade onde cresceu não havia faculdades de literatura e as condições financeiras de sua mãe não lhe permitiram mudar-se para Moscou, como ele sonhava. Formou-se em Matemática e Física, em 1941, matérias pelas quais também demonstrara particular aptidão. Solzhenitsyn tornou-se soldado do exército russo, combatendo por dois anos no segundo conflito mundial. Das trincheiras, enviava cartas a um seu amigo de infância, criticando, às vezes, o governo de Stalin. Por essas críticas, Alexander foi preso, em 1945, e condenado a oito anos de prisão nos campos de trabalho forçado. Graças à sua formação matemática, passou os primeiros quatro anos trabalhando num instituto de pesquisas para onde eram enviados prisioneiros cientistas. Depois, porém, foi enviado a um campo de concentração, no gelo do Cazaquistão, onde trabalhou como pedreiro, mineiro e metalúrgico. Neste período foi-lhe diagnosticado um câncer. As suas condições de saúde começaram a piorar. Em 1954, Alexander chegou quase morto à cidade de Tashkent, no Uzbequistão, onde finalmente foi operado e curado. Durante todos esses anos, Solzhenitsyn escrevia, às escondidas, poemas e contos. Ele memorizava os poemas e depois os queimava. Todo dia, usando um terço, declamava seus poemas, um em cada conta, para não os esquecer. Quando alguém perguntava, dizia que estava rezando. Os relatos de sua prisão – que formarão sua obra mais famosa, O Arquipélago Gulag - eram escritos em minúsculas folhas de papel, que eram enterradas, para a polícia não o descobrir. Numa autobiografia, escrita para a ocasião da entrega do Prêmio Nobel da Literatura, ele disse: “Durante todos os anos, até 1961, eu não apenas estava convencido que sequer uma linha por mim escrita jamais seria publicada durante minha vida, mas, também, raramente ousava permitir que meus amigos lessem o que havia escrito por medo que o fato se tornasse conhecido”.

As mudanças políticas na Rússia dos anos 50, mudaram, por alguns anos, o destino de Alexander. De fato, depois da morte de Stalin, em 1956, Nikita Krushev, que assumiu o comando da União Soviética, começou o processo de desestalinização, denunciando abertamente os crimes cometidos por Stalin. Em 1961, em ocasião do XXII Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), o governo convidou os escritores russos a unirem-se à desestalinização.

Solzhenitsyn conseguiu, então, publicar, com a aprovação oficial de Krushev, seu primeiro romance: Um dia na vida de Ivan Denisovic, diário nos campos de trabalho forçado durante a ditadura staliniana. Graças a esse romance, Solzhenitsyn tornou-se conhecido também no mundo ocidental. Continuou suas críticas e, por isso, foi expulso em 1967 da união dos escritores russos. Em 1970, o Prêmio Nobel de Literatura lhe foi dado, mas o governo russo não permitiu que o recebesse. Solzhenistyn não poupou esforços e palavras para denunciar o arbítrio das leis soviéticas e o drama do povo russo transformado pelo regime comunista em “inimigo de si mesmo”, como ele afirmou naqueles anos. Em 1974, após tirar dele a nacionalidade russa, o governo o expulsou. Alexander passou dois anos na Suíça e o resto do exílio nos Estados Unidos, onde permaneceu até 1994. Antes disso, em 1973, em Paris, foi publicado o primeiro volume do seu romance de maior sucesso, o Arquipélago Gulag. Na obra, ele denunciou o sistema arbitrário do regime de Stalin, as prisões, os campos de trabalho forçado. Lutou para que sua obra não fosse instrumentalizada pelos adversários do regime. Era contra qualquer tipo de ideologia, comunista ou não. O que lhe importava era o ser humano. Dizia que “aquilo que rende inestimável e único o ser humano não vem da política, nem da ideologia, nem mesmo das suas próprias qualidades humanas, mas de algo que o homem traz dentro de si”. Solzhenitsyn chamava isso de alma. A fé em Deus - ele pediu para ser batizado em 1957 - o dotou de grande força moral e deu significado à sua missão de escritor. Mesmo após a dissolução da União Soviética, Solzhenitsyn continuou, por meio de seus escritos, a ser a consciência crítica da sociedade russa, fazendo-se porta-voz da dignidade e da liberdade infinita do ser humano.