quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

A mediação da Santa Sé no conflito Argentina-Chile

No último sábado, dia 28 de novembro, o papa Bento XVI recebeu no Vaticano a visita de Cristina Fernández de Kirchner e Michelle Bachelet, respectivamente presidentes da Argentina e do Chile. O motivo da visita era celebrar os 25 anos do Tratado de Paz e Amizade assinado pelos dois países no dia 29 de novembro de 1984 no Palácio Apostólico do Vaticano, graças à mediação da Santa Sé, e que salvou os dois países de um conflito que parecia inevitável.

As causas da disputa envolviam a soberania das ilhas Picton, Lennox e Nueva, localizadas entre a entrada do Canal do Beagle e o Cabo Horn na ponta da Terra do Fogo. O litígio era antigo, remontava ao século XIX, no período em que Argentina e Chile estavam ainda definindo suas fronteiras. Entre 1822 e 1833, o Chile estabeleceu como seu limite o Cabo Horn. Com o tempo, porém, tentou ampliar um pouco mais seu espaço de navegação na região do Estreito de Magalhães. As tratativas de definição de fronteiras estenderam-se por mais de um século, ora com tratados de paz, ora com pedidos de revisão e crises diplomáticas. Em 1959, uma nova crise obrigou os dois países a se comprometerem na busca de uma solução por meio da arbitragem.

Em 1977, a Rainha Elizabeth II, da Grã-Bretanha, nomeada árbitro da disputa, decidiu que a posse das três ilhas disputadas ficaria com o Chile. A Argentina, por sua vez, ficaria com a Ilha Becasse, ao lado da ilha Picton, e com a livre navegação para o acesso a Ushuaia, a cidade mais austral do mundo, capital da região da Terra do Fogo. A Argentina não ficou satisfeita. Em 1978, ano da vitória da Seleção Argentina na Copa do Mundo, o governo dos militares, decidiu reabrir a disputa com o Chile, talvez na tentativa de reforçar o sentimento nacionalista enfraquecido sob os golpes da ditadura militar. Na época, o Chile também era governado por um ditador militar, Augusto Pinochet.

Os ânimos começaram a esquentar, e os dois governos preparavam já seus exércitos. Em 21 de dezembro de 1978, Pinochet avisou os Estados Unidos da iminência do conflito militar. A Argentina marcou o início do bombardeio e a invasão do Chile para as 22 horas do dia seguinte. O conflito era tido como inevitável. Mas apenas três horas antes do início do conflito, a Junta Militar da Argentina decidiu aceitar a mediação da Santa Sé, que havia sido interpelada pelo próprio presidente argentino, General Videla.

O então João Paulo II, recém eleito, enviou o Cardeal Antonio Samoré para que ajudasse os dois governos a encontrar uma solução pacífica para o conflito. No dia 8 de janeiro de 1979, os chanceleres da Argentina e Chile assinaram a Ata de Montevidéu, com a qual se comprometeram em aceitar a mediação do Vaticano. Em 1980, o papa João Paulo II propôs que o governo argentino reconhecesse a soberania do Chile sobre as três ilhas do Canal de Beagle. A Argentina recusou tal proposta.

Somente em 1984, quando, na Argentina, voltou a democracia, um plebiscito aprovou, com 80% dos votos, a proposta da Santa Sé. Chegou-se, finalmente, à assinatura do Tratado de Paz e Amizade que terminou com uma disputa de mais de um século e que livrou os dois países de um conflito que teria custado a vida de milhares de pessoas.

No último sábado, o papa Bento XVI, encontrando as delegações dos dois países, lembrou com satisfação como “aquele histórico evento contribuiu beneficamente para reforçar em ambos os Países os sentimentos de fraternidade, como também uma mais decidida cooperação e integração (...). O evento que hoje comemoramos faz já parte da grande história de duas nobres Nações, mas também de toda a América Latina. O Tratado de Paz e Amizade é um exemplo luminoso da força do espírito humano e da vontade de paz diante das barbáries e da absurdidade da violência e da guerra como meio de resolver as divergências”.

Bento XVI lembrou as palavras do papa Pio XII que, na véspera da eclosão da II Guerra Mundial, pronunciou, numa mensagem radiofônica, a célebre frase: “Nada é perdido com a paz. Tudo pode ser perdido com a guerra”. Com isso, Bento XVI quis sublinhar a importância de se tentar resolver as controvérsias por meio do diálogo, mediante pacientes negociações, levando em conta “as justas exigências e os legítimos interesse de todos”.

A celebração, no Vaticano, desse Tratado de Paz foi, certamente, relevante, por se tratar do reconhecimento oficial, por parte de dois Estados, da capacidade de mediação internacional da Santa Sé. O caminho do diálogo e da negociação deu certo. A presidente argentina, no seu discurso, reconhecendo que, graças à mediação do papa João Paulo II e de seu representante, o Cardeal Samoré, a guerra foi evitada, concluiu: “Quem é um mediador? É alguém que não está nem de um lado nem de outro. Está pela paz”.

Um comentário:

Ígor Cardoso disse...

Olá, professora Anna. Sou acadêmico de Direito da UFPE e almejo seguir a carreira diplomática. Soube pela TV da visita das Chefes de Estado de Argentina e Chile à Santa Sé e, ao buscar maiores informações na Internet sobre o iminente conflito mencionado na reportagem, encontrei seu blog. Que magnífica surpresa tive! Meus mais sinceros parabéns pela iniciativa e pela qualidade de seus textos e comentários. Está adicionado aos meus favoritos, já que pretendo voltar aqui sempre. Gostaria também de poder ser um de seus interlocutores na discussão de questões de relações internacionais e política externa, objetos de minha constante atenção. Enfim, reitero minhas congratulações e lhe agradeço pela disposição em compartilhar todo o seu conhecimento conosco.