quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Instituto Universitário Sophia - Projeto-piloto de uma nova universidade

Nas últimas linhas da minha coluna da quarta-feira passada, citei uma experiência inovadora: a inauguração, na Itália, no dia 1º de dezembro, do Instituto Universitário Sophia. Qualifiquei tal evento como motivo de esperança no âmbito internacional. Vamos descobrir o porquê. No seu primeiro ano de atividade, o Instituto Sophia oferecerá um mestrado em “fundamentos e perspectivas de uma cultura da unidade”, com duração de dois anos e, posteriormente, será oferecido um doutorado. A primeira turma é formada por 40 estudantes, provenientes de 16 países de cinco continentes.

No primeiro ano, os cursos serão organizados em quatro áreas fundamentais: teologia, filosofia, ciências do viver social e racionalidade lógico-científica. No segundo ano, será possível escolher entre o campo teológico-filosófico e político-econômico. A internacionalidade dos alunos estende-se também ao corpo docente, altamente qualificado. O reitor do instituto, Piero Coda, é professor de Teologia na Pontifícia Universidade Lateranense de Roma e presidente da Associação Teológica Italiana.

Entre os professores, Antonio Maria Baggio, de ética social na Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma; Luigino Bruni, professor de economia política na Universidade de Milão; Judith Povilus, ex-professora de matemática na De Paul University de Chicago (Ilinois - USA); Sérgio Rondinara, professor de filosofia da ciência na Faculdade de Filosofia da Universidade Pontifícia Salesiana de Roma; e Gerard Rossé, professor de exegese do Novo Testamento na Escola de La Foi, de Friburgo, Suíça. O novo instituto foi criado na pequena cidade de Loppiano, nos arredores da belíssima Florença, e foi instituído pela Congregação da Educação Católica da Cidade do Vaticano, por decreto do dia 7 de dezembro de 2007.

A nova instituição nasceu no contexto do Movimento dos Focolares, movimento católico espalhado no mundo inteiro, fundado por Chiara Lubich, falecida no dia 14 de março passado. A fundação de uma universidade fazia parte de um sonho que Chiara Lubich alimentava desde os anos 60: o de ver nascer uma realidade acadêmica para ensinar a doutrina da unidade. Ela estava convicta de que o carisma da unidade - carisma do Movimento dos Focolares - possuía em si a possibilidade de gerar uma doutrina capaz de iluminar os diversos âmbitos do saber. O Instituto Sophia (do grego, sabedoria) nasceu com o objetivo de ser um laboratório de diálogo entre povos e culturas diversos: um centro de formação, mas, também, uma escola de vida.

Piero Coda, reitor do instituto, explicou: “É uma odisséia comprometedora, mas fascinante da qual sentíamos necessidade, ao perceber a crise da instituição universitária. Hoje, não são necessárias faculdades especializadas, mas locais onde se recompõe o saber no respeito da autonomia de cada disciplina. O corpo docente é composto por um grupo de professores estáveis assessorados por professores visitantes e assistentes. A novidade está no método formativo aplicado: o encontro e a unificação entre estudo e vida. No futuro, prevemos a abertura de sedes da Sophia em diversas partes do mundo. A nossa universidade é aberta a qualquer pessoa, de qualquer convicção religiosa. Os futuros diplomados serão homens-mundo, com coração e mente abertos, que trabalham para construir uma nova cultura e uma nova sociedade e sabem orientar-se e governar a complexidade do mundo”.

As palavras do reitor parecem ecoar uma definição de universidade proferida em 2007 pelo papa Bento 16, em ocasião do encontro com representantes de universidades européias: “As universidades não devem nunca perder de vista seu chamado particular a ser universitas nas quais as várias disciplinas, cada uma de sua maneira, sejam consideradas parte de um unum maior. Quanto é urgente a necessidade de redescobrir a unidade do saber e de contrastar a tendência à fragmentação e ausência de comunicabilidade!”. Mais informações sobre o Instituto Universitário Sophia em: http://iu-sophia.org.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Luto nacional e internacional

A última semana foi marcada pela morte de tantas pessoas, aqui em Santa Catarina, bem perto de nós, e de tantas outras um pouco mais longe, na Índia e na Nigéria. Assim como tentamos entender o porquê das calamidades naturais que atingiram os nossos irmãos catarinenses, queremos entender, na medida do possível, quais as causas que provocaram a morte de tantos irmãos indianos, americanos, britânicos, israelenses, africanos, também nos últimos dias.

Na Índia, a capital financeira do país, Mumbai, foi atingida por sete ataques simultâneos que provocaram a morte de 195 pessoas, muitas das quais eram estrangeiras. Os alvos dos ataques terroristas foram os famosos hotéis Taj Mahal e Oberoi-Trident, a estação ferroviária principal, o centro judaico, um restaurante, um hospital e um condomínio, todos locais frequentados prevalentemente por estrangeiros, principalmente americanos, britânicos e israelenses.

Em um primeiro momento, os ataques foram reivindicados por um grupo desconhecido, chamado Mujahidem do Deccan, mas a confissão do único terrorista sobrevivente revelou que quem organizou os atentados terroristas foi um grupo chamado Lashkar-e-Taiba, o mesmo que, em 2001, foi responsável pelo atentado ao Parlamento Indiano. Tal grupo teria sua base em território paquistanês e seria formado por extremistas islâmicos que lutam pela região da Caxemira. Em 1947, a região foi doada à Índia pelo marajá de Caxemira em agradecimento pela ajuda recebida pelo exército indiano. Desde então, o Paquistão reclama este território habitado em prevalência por muçulmanos.

A rivalidade entre indianos e paquistaneses já provocou três guerras e fomentou a corrida dos dois países para obter armas nucleares. Numerosas são as hipóteses formuladas para explicar este novo atentado que chocou a cidade mais conhecida e próspera da Índia. As mais convincentes parecem ser a de expulsar investidores estrangeiros, minando a confiança dos investidores ou a de interromper as recentes tentativas de cooperação contra o terrorismo iniciadas pelo governo indiano e pelo novo presidente paquistanês, Asif Ali Zardari.

De fato, diante da descoberta da responsabilidade do grupo terrorista paquistanês, o governo indiano acusou imediatamente as autoridades de Islamabad de serem indiretamente responsáveis pelos atentados. O governo indiano acusou Zardari de não ser capaz de controlar os próprios serviços segredos paquistaneses, aos quais os terroristas parecem estar ligados. Tal acusação não é infundada, visto que o país está há décadas imerso numa infinda guerra civil, que não permite aos governantes o controle pleno do país.

A Índia é um país complexo. A unidade na diversidade que Gandhi sonhava construir não se realizou plenamente. Ao lado da modernização tecnológica, existem cerca de 150 milhões de muçulmanos que representam a parte mais pobre e menos instruída da população indiana. Onde existe desigualdade econômica e discriminação social, a rivalidade é inevitável. Frequentemente, as religiões são acusadas de serem as principais responsáveis pelos conflitos, mas elas servem também para encobrir outras causas.

No caso da Nigéria, uma das regiões mais pacíficas do país foi palco de conflitos violentos que provocaram a morte de quase 400 pessoas e deixaram dez mil desalojadas. Os meios de comunicação internacionais logo apontaram como causa da violência a rivalidade entre muçulmanos e cristãos. Mas o Arcebispo de Ajuba, capital da Nigéria, Mons. John Onayekan, afirmou que os motivos dos conflitos são políticos e não religiosos. A causa dos conflitos, apontada pelo Arcebispo, é a disputa pelo controle do poder, resultado de contrastes políticos por ocasião das eleições regionais.

O âmbito religioso é território fértil para o surgimento de radicalismos, mas é também espaço privilegiado para iniciativas de conciliação. Nesta semana de luto internacional, é motivo de esperança a inauguração, na Itália, no dia 1º de dezembro, do Instituto Universitário Sophia: universidade que tem como objetivo maior a construção da cultura da unidade. Mas sobre isso trataremos na próxima semana.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

A democracia chinesa do dólar conquista a América Latina

Concluiu-se neste domingo, dia 23, a viagem do presidente chinês, Hu Jintao, na América Latina. A visita teve início no dia 17 de novembro na Costa Rica, onde Hu Jintao encontrou-se com o presidente Oscar Arias. Após a Costa Rica, o presidente chinês visitou Cuba e o Peru. Em Lima, capital do Peru, Hu Jintao participou da cúpula anual da APEC (Cooperação Econômica Ásia-Pacífico). É a segunda vez que Hu Jintao visita a América Latina. A primeira foi em 2004. Desde então, a América Latina passou a ser uma região de interesse estratégico para o gigante asiático que, nos últimos anos, busca diversificar os países de suas importações. Do lado americano, as relações com a República Popular da China também são recentes. Com exceção de Cuba, que já em 1960 reconheceu a legitimidade do governo de Pequim, a maioria dos países da América latina esperou que os Estados Unidos reconhecessem oficialmente o governo de Pequim, em 1972, para estreitar relações diplomáticas com a China. A Argentina e o México reconheceram o governo de Pequim já em 1972; o Brasil em 1974 e a Bolívia somente em 1985. Na América Latina existem ainda 12 países que não possuem relações diplomáticas com Pequim, e que, portanto, apóiam o governo da ilha de Taiwan. Entre eles estão Panamá, Paraguai, Guatemala, El Salvador, Honduras e República Dominicana. A tentativa de reverter este quadro, ganhando novos interlocutores diplomáticos e enfraquecendo a posição diplomática de Taiwan, foi apontada como um dos motivos da visita de Hu Jintao. Até o ano passado, por exemplo, a Costa Rica estava entre os países que apoiavam Taiwan. Contudo, o investimento chinês de 300 milhões de dólares em títulos na Costa Rica e a doação de 73 milhões de dólares para a construção do novo estádio nacional, fez o país mudar de lado. Em junho de 2007, celebrou-se, de fato, o início das relações diplomáticas com o país. É a eficácia da diplomacia do dólar, que neste momento de dificuldade econômica poucos países parecem querer recusar. Há menos de 1 mês a China tornou-se integrante do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e desde 2004 é observadora na OEA (Organização dos Estados Americanos). O foco do interesse da China pelos mercados latino-americanos reside principalmente nos setores de recursos energéticos, de minérios e no setor agrícola. Pequim compra soja da Argentina e do Brasil. Do Chile e Peru a China importa cobre; da Bolívia, gás; da Venezuela e do Equador, petróleo; de Cuba, níquel e açúcar. Nesta nova visita o presidente chinês assinou acordos de Livre Comércio com os governos dos países visitados. Cuba se reafirmou como seu parceiro estratégico. Desde 2006, chegaram à ilha 2544 estudantes chineses para cursar espanhol e outros cursos universitários. O presidente chinês trouxe, nesta visita, 4,5 toneladas de ajuda humanitária para os desabrigados, vítimas dos três furacões que atingiram recentemente a ilha cubana. Com tal ajuda, o governo chinês quer demonstrar que sua reputação de “nação predatória” - imagem difundida, sobretudo, pelos Estados Unidos – não corresponde à realidade. É evidente que a expansão chinesa na América Latina coloca em questão a tradicional hegemonia americana no continente. Para os Estados Unidos, a tentativa chinesa de ampliar sua influência econômica na região é uma ameaça à sua já enfraquecida hegemonia. Contudo, o governo chinês faz questão de sublinhar seus objetivos pacíficos. Jiang Shixue, subdiretor da Academia de Ciências Sociais da China, em Pequim, esclareceu que o objetivo da visita é pragmático: “A China entende bem que a América Latina é o quintal dos Estados Unidos, então não há razão para desafiar a influência americana”. Durante sua visita, Hu Jintao sublinhou que a China segue o caminho do desenvolvimento pacífico e manterá a política de abertura de benefício mútuo e progresso econômico. Ele reforçou que a China acredita que todos os países, grandes e pequenos, ricos ou pobres, fortes ou fracos, devem ser iguais e que o desenvolvimento dos interesses comuns é o propósito da cooperação bilateral China-América Latina. Se for mesmo assim, a China terá boas chances de se tornar um dos parceiros mais importantes do continente latino-americano.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Do G-8 ao G-20 - mudanças na geopolítica internacional

Realizou-se em Washington, no domingo passado, 15 de novembro, a reunião do G-20, grupo que reúne os países ricos (G-8) mais os principais países emergentes, dentre os quais Brasil, Índia e China. Foi um encontro histórico, pois, pela primeira vez, a discussão acerca do futuro econômico do nosso planeta não foi somente monopólio dos países ricos. Os principais países emergentes puderam apresentar suas propostas e trabalhar lado a lado com os “grandes” da terra. O presidente Lula, que durante o summit sentou ao lado da China e dos Estados Unidos, comentou brincando a este propósito: “A impressão era que eles tomaram chá de humildade”. O desejo de reunir não só o clássico G-8, mas, também, o G-20 significou, de fato, tomar consciência de que, para superar uma crise cujos efeitos devastadores atingiram a todos os países, será preciso pensar juntos medidas eficazes de prevenção contra possíveis novas crises no futuro. O summit de Washington foi comparado a uma nova Bretton Woods onde, em 1944, foram colocadas as bases para a criação da atual ordem econômica internacional, com a implantação do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. Todavia, tal comparação foi desmentida pelos resultados do summit recém concluído. Nenhuma nova ordem econômica internacional foi criada neste domingo, nenhuma decisão efetiva foi tomada, mas não por isso podemos considerar inúteis os esforços demonstrados, neste encontro, pelos Chefes de governo.

O documento final do G-20 contém propostas de medidas importantes que, se concretizadas, poderão constituir base sólida para um novo sistema econômico. Uma das propostas mais esperadas, por exemplo, foi a da criação de um colégio de supervisores que deverá monitorar 30 entre as maiores instituições financeiras internacionais. O documento de Washington definiu cinco princípios básicos de reforma da ordem financeira internacional: aumentar a transparência das aplicações financeiras de alto risco; melhorar a regulamentação, incluindo forte vigilância sobre as agências de avaliação de crédito; promover a integridade dos mercados; reforçar a cooperação internacional entre as entidades de vigilância e os responsáveis da supervisão sobre os vários segmentos do mercado; reformar as instituições financeiras internacionais criadas por Bretton Woods (FMI e Banco Mundial), ampliando o acesso das economias emergentes a estas instituições. A resolução de Washington prevê também a ampliação, em favor dos países emergentes, do Fórum de Estabilidade Financeiro (FSF), criado em 1999 após a crise econômica dos países asiáticos. Tal organismo internacional possui o papel central de regulamentação dos mercados e reúne as autoridades de vigilância bancária e dos mercados dos maiores países. Outras medidas relevantes foram a decisão de superar o impasse da Rodada de Doha deste ano, e a rejeição do protecionismo, evitando, ao menos nos próximos 12 meses, de erguer barreiras comerciais. Tais medidas deverão ser implantadas até dia 31 de março de 2009, por meio de grupos de trabalho coordenados pelo Brasil, Coréia do Sul e Grã-Bretanha. A esses grupos de trabalho caberá também a tarefa de definir o critério de escolha dos 30 maiores bancos e instituições financeiras internacionais que deverão ser colocados sob vigilância do colégio de supervisores acima mencionado. O próximo summit mundial está previsto para o dia 30 de abril de 2009, e será realizado em Londres.

A contribuição mais significativa do summit certamente foi o reconhecimento da necessidade de substituição do velho G-8, reduto dos países ricos, pelo G-20, aliás, provável G-22, com a presença da Espanha e Holanda, convidadas a participar do summit. Até a Suíça quer ingressar no G-20. A crise econômica internacional provocou efeitos devastadores, mas, de outro lado, serviu para redesenhar a geopolítica internacional: não mais fundada na concentração-exclusão, mas em valores mais abertos, solidários, internacionalistas de desconcentração-inclusão.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Barack Obama: o "presidente Google"

O “Presidente Google”, ou o “Google da política”: assim é chamado Barack Obama no ambiente da Internet, onde tantas pessoas trabalharam apaixonadamente para que ele se tornasse o primeiro presidente afro-americano da história dos Estados Unidos da América. Este apelido bizarro foi-lhe dado por causa da extraordinária rapidez com a qual Obama subiu a escada da carreira política, mas, também, pela sua capacidade de usar os conhecimentos tecnológicos como nenhum outro candidato à presidência americana demonstrou possuir. Barack Obama é um presidente americano sui generis, pois não se encaixa nos moldes pré-fixados pela tradicional ortodoxia americana. Contudo, é justamente esta sua peculiaridade que fez despertar em milhões de americanos (e não só) a esperança de que algo novo estava surgindo.

Barack Obama é o presidente das misturas que correm em seu sangue. Conscientemente ou não, isso o tornou mais compreensivo e conciliador. A vida de Obama começou no dia 4 de agosto de 1961, na cidade de Honolulu, no Havaí. Filho de Barack Obama Senior, natural de uma pequena aldeia do Quênia, na África, e de Ann Dunham, americana, branca, nascida em Wichita, no estado do Kansas. Seus pais encontraram-se na Universidade do Havaí. A mãe de Obama estudava antropologia, e o pai - que vencera uma bolsa de estudos que lhe permitiu deixar a África - estudava economia. Mas o casamento durou poucos anos. Eles se separaram quando Barack tinha dois anos. Em 1967, a mãe de Obama casou-se com o estudante indonésio Lolo Soetero. O casal decidiu se mudar para a Indonésia. Barack tinha seis anos. A Indonésia que ele conheceu era a de Suharto, que naquele ano, com um golpe de estado, deu início a uma ditadura que duraria mais de trinta anos. Em Jacarta, capital da Indonésia, Barack Obama freqüentou escolas muçulmanas e cristãs. Obama era filho de muçulmano e, consequentemente, segundo a lei do Islã, era muçulmano. Ele, porém, afirmou em várias entrevistas nunca ter praticado o islamismo. De fato, aos 27 anos converteu-se ao cristianismo. Aos 10 anos, Barack Obama voltou para o Havaí, sob os cuidados dos avós maternos. Aos 18, terminou o ensino secundário e mudou-se para Nova Iorque, onde se formou em Ciência Política na Universidade de Columbia. Após ter trabalhado alguns anos em empresas de Nova Iorque, decidiu mudar-se para Chicago, no estado de Illinois. Ali, de 1985 a 1988, trabalhou como diretor do Projeto Comunidade em Desenvolvimento (DCP), uma associação comunitária religiosa por meio da qual Obama mobilizava grupos negros do bairro industrial de South Side, uma área pobre da cidade de Chicago em busca de melhorias sociais e econômicas. Em 1988, Obama ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Harvard. A sua figura brilhante não passou despercebida. Um dos seus professores de direito, Charles Oglotree, dizia de Obama que “ele não era um daqueles estudantes dos quais só queria-se ler as anotações ou ouvir sua voz. Você queria ouvi-lo pensando. Havia algo de especial nele”. No primeiro ano de Harvard, Obama foi escolhido como editor da revista Harvard Law Review e, no ano seguinte, eleito como presidente da revista, formada por uma equipe de 80 editores. Foi uma conquista importante porque Obama foi o primeiro afro-americano a ser presidente da revista. Em 1991, obteve o título de Doutor em Direito, graduando-se com louvor. Retornou, então, para Chicago onde, em 1992, casou-se com Michelle Robinson, também advogada e formada em Harvard. Até 1996, Obama trabalhou como advogado em defesa dos direitos civis, colaborando com diversas organizações filantrópicas e atuando como docente universitário de direito constitucional na Universidade de Chicago. Durante todos esses anos, ele foi construindo de forma capilar sua base de apoio, o que lhe permitiu, em 1996, ser eleito Senador pelo Estado de Illinois. De lá para cá foi uma corrida só. Ele associou ao tradicional, mas eficaz método do “porta a porta”, o novo instrumento de agregação por excelência da Internet. Mais do que ao seu Partido, ele deve sua vitória ao povo: “Somos os Estados Unidos da América”, exclamou no dia de sua eleição. Tomara que o cosmopolita Obama, representativo da hodierna mistura cultural, consiga reconciliar de fato os EUA com o resto do mundo. Sua vitória já foi um primeiro passo.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

A República Democrática do Congo lança um SOS ao mundo

Nas últimas semanas, enquanto a atenção da opinião pública internacional estava absorvida pelos desenvolvimentos da crise financeira internacional e pelo resultado das eleições presidenciais americanas, no coração da África uma nova guerra civil marcava o início de uma crise humanitária de dimensões catastróficas.

A República Democrática do Congo (RDC) - país localizado na região central do continente africano - é o palco deste novo e triste capítulo da história africana. Desde agosto passado, na província de Kivu - região oriental do país -, combates intensos entre as tropas governistas e as milícias do CNPD (Conselho Nacional para a Defesa da Paz), lideradas por Laurent Nkunda, obrigaram milhares de pessoas a deixar suas casas. Nestas últimas semanas a situação piorou. Segundo dados da ONU, seriam até agora 250 mil as pessoas que foram obrigadas a abandonar as próprias casas. São milhares de seres humanos caminhando sem rumo pelo país em busca de um refúgio seguro que, num país devastado há anos pelas contínuas guerras civis, praticamente não existe. Por semanas, as ajudas humanitárias não conseguiram chegar até a região dos conflitos. Na quarta-feira passada, o cessar-fogo permitiu às agências humanitárias, lideradas pela ONU, organizar comboios de ajuda. Ontem, o primeiro comboio da ONU conseguiu chegar à aldeia de Rutshuru, onde havia um dos maiores campos de refugiados, mas nos últimos meses foi transformado em base militar dos rebeldes do CNPD. Por isso, quando o comboio chegou, não encontrou mais ninguém. Os refugiados, que conseguiram escapar do massacre de 1994, deixaram a relativa segurança do campo por medo de não conseguirem escapar novamente da violência. O ministro do exterior britânico, David Miliband, em missão na África junto ao ministro francês Bernand Kouchner, alertou que seriam cerca de 1 milhão e 600 mil desalojados. O risco de epidemias e morte por desnutrição é altíssimo. A coordenadora da organização humanitária Médicos sem Fronteiras, descreveu assim as condições do povo congolês: “As pessoas não sabem para onde ir, caminham por quilômetros procurando refúgio por alguns dias, mas sabem que devem continuar andando, sem rumo. Muitas vezes, caminham sem sapatos e protegendo-se da chuva com capas improvisadas. Muitos têm o estômago inchado pelas raízes e ervas que comeram ao longo do caminho. Outros não comem nem isso há dias. Param quando o cansaço ou a dor lhes impede de caminhar. Então caem e dormem na estrada”. Os refugiados tiveram suas casas queimadas durante os conflitos, não possuem mais nada e continuam sendo alvo da violência feroz dos rebeldes e das tropas governistas. O líder das milícias do CNPD, Laurent Nkunda, afirmou estar lutando para proteger a população de etnia tutsi que, segundo ele, estaria sendo ameaçada pelas tropas governistas da etnia hutu. Ele reivindica negociações diretas com o governo congolês. O presidente da República Democrática do Congo, Joseph Kigali, recusou-se a negociações diretas, mas se declarou disposto a participar de uma reunião sob a égide da ONU e das organizações regionais africanas. Tal reunião deverá se realizar na próxima semana, na capital do Quênia (Nairobi). Entretanto, a missão permanente de paz da ONU, presente no território congolês desde o ano de 2000, tenta, como pode, ajudar os refugiados.

É uma situação complexa, cujas raízes se perdem no passado doloroso do continente africano, retalhado e explorado pelas potências européias do séc. XIX, e vítima dos conflitos étnicos localistas. Há pessoas que afirmam que os conflitos atuais são causados por problemas tribais de exclusivo interesse africano. Todavia, diversos analistas políticos internacionais afirmam que não se trataria somente disso. Por trás das divisões entre etnias e povos haveria também interesses políticos e econômicos externos. A região oriental da RDC é riquíssima em minérios preciosos, como ouro e diamantes. Empresas multinacionais estão interessadas em manter o país dividido para poder desfrutar de tais riquezas. Existiria até um projeto de criação de um novo estado nesta região, que se chamaria “República dos Grandes Lagos”. A África continua sendo vítima de si mesma (conflitos étnicos) e dos falsos amigos estrangeiros.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Fórum Ásia-Europa - em busca de uma solução para o caos internacional

A crise financeira internacional está contagiando economias de vários países. Presidentes e chefes de governo tomaram medidas preventivas para atenuar os efeitos colaterais da crise americana. Julgando, porém, não ser suficiente agir isoladamente, presidentes e chefes de governo de 43 países reuniram-se nos dias 24 e 25 de outubro em Pequim - 7ª Cúpula da Ásia-Europa (ASEM) - para discutir como enfrentar a atual crise financeira e como colocar bases seguras para dificultar o surgimento, no futuro, de crises semelhantes.

A criação da ASEM (Asia-Europe Meeting) deve-se à proposta do Primeiro-Ministro de Cingapura, Goh Chok Tong. A Cúpula reuniu-se pela primeira vez em 1996, na capital da Tailândia, Bangkok, com o objetivo de fortalecer as relações entre Ásia e Europa no contexto das mudanças internacionais da década de 1990. Naquele período, de fato, estavam formando-se blocos econômicos regionais na Ásia (com a criação da APEC), na América do Norte (com a NAFTA), e na Europa, com o fortalecimento do processo de integração européia. Contudo, as relações da Europa com a Ásia eram quase que inexistentes. Para fortalecer tais relações e contrabalançar a influência dos Estados Unidos na Ásia e na Europa, os países asiáticos buscaram uma aproximação com a União Européia. Desenvolveu-se, desta forma, um espaço de diálogo profícuo, promotor de um melhor entendimento cultural entre seus povos e de relações mais estreitas no âmbito político e econômico. Compõem a ASEM os Chefes de Estado e/ou de governo dos países da ASEAN (Associação das Nações do Sudeste Asiático), da China, da República da Coréia, do Japão e dos países da União Européia. Eles reúnem-se de dois em dois anos, alternadamente na Ásia e na Europa. Este ano, Pequim, após ter sediado com sucesso os Jogos Olímpicos, teve a possibilidade de acolher mais uma vez os governantes dos países da Ásia e da Europa, confirmando seu papel ativo no âmbito internacional. O governo chinês presidiu a 7ª Cúpula juntamente com o governo francês, presidente de turno da União Européia. A China escolheu como tema prioritário das discussões a crise financeira internacional, mas não descuidou de temas igualmente importantes como o das mudanças climáticas, que foi objeto de um dos três documentos aprovados neste Fórum. Outros temas de discussão foram: as relações entre Ásia e Europa; a violação dos direitos humanos no Mianmar (antiga Birmânia); a desnuclearização da Coréia do Norte; a reconstrução do Afeganistão; o diálogo com o governo iraniano. Em relação à crise internacional, a 7ª Cúpula propôs a criação de uma associação mundial que reúna governos, setor privado, sociedade civil e outras instituições internacionais, e que desempenhe função de coordenação e cooperação neste setor. Unânime o pedido de maior transparência e maior controle do sistema financeiro global, com a supervisão severa das ações dos protagonistas financeiros.

No seu discurso de conclusão, o primeiro-ministro chinês, Wen Jiabao, ressaltou a necessidade de uma maior regulação financeira para assegurar a estabilidade: “Precisamos de uma economia virtual saudável que possa dar apoio à economia real. Os problemas da economia virtual não podem afetar o desenvolvimento da economia real”. No seu discurso, Wen Jiabao declarou também que “a China está pronta a cooperar de forma pragmática com os outros países em busca de soluções para enfrentar a atual crise”. Na sua mensagem conclusiva, o presidente francês Nicolas Sarkozy antecipou que, na próxima reunião do G-20, em Washington, serão tomadas decisões conclusivas em relação à crise financeira internacional. Neste sentido, a 7ª Cúpula da ASEM, mesmo não sendo um fórum negociador ou de solução de problemas, foi um instrumento válido na construção de consensos preciosos em preparação do meeting do G-20, dia 15 de novembro próximo em Washington.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Itália nas trevas - a democracia "discriminatória" da Liga do Norte

Tempos difíceis para o “Bel Paese”, o país do sol e do mar, meta sonhada por estrangeiros de todos os tempos e lugares. Ao invés da luz do sol, a Itália parece estar acometida por tempestades caracterizadas por ventos obscurantistas e retrógrados. O governo Berlusconi, que prometeu a ressurreição da economia italiana, está jogando seus compatriotas (metade dos quais acreditaram em suas promessas de felicidade e prosperidade), num reino de terror, medo e divisão.

Desde sexta-feira passada, dia 17 de outubro, as praças das principais cidades italianas, as universidades e as escolas são palcos de protestos inflamados contra a reforma do sistema escolar, obra da atual Ministra da Instrução, Maria Stella Gelmini. Reforma que, ao invés de dar esperança de melhoria para a já problemática situação da escola italiana, difundiu entre professores, gestores e alunos medo e desespero. Existem vários pontos polêmicos na reforma apresentada pelo governo Berlusconi: o retorno do professor único no ensino primário e médio; a unificação de escolas que tenham menos de 500 alunos (na Itália são cerca 2.600 com menos de 300 alunos) e de salas com menos de 16 alunos (atualmente são quase 50.000 as salas deste tipo), medidas que dizimarão os funcionários e professores. A reforma Gelmini prevê uma radical revisão dos ordenamentos escolares, a reformulação dos horários e linhas de estudo, e a reorganização da rede escolar com uma racionalização da utilização dos recursos humanos. A oposição denuncia que tais reformulações resultarão em cerca de 130.000 demissões entre professores e pessoal técnico-administrativo. Além disso, mais de 200.000 professores de escolas e universidades que trabalham há anos com contrato a tempo determinado perderão, com a reforma, a esperança de serem contratados definitivamente, pois, a partir deste ano, será contratado somente um professor a cada cinco docentes aposentados. Os sindicatos denunciam que os cortes na educação serão de 8 bilhões de euros, uma cifra absurda num país que destina à instrução somente 3% do PIB nacional. As universidades também não escaparam dos tentáculos perigosos da nova reforma. Os financiamentos públicos a elas destinados serão radicalmente reduzidos. A reforma dará a possibilidade (segundo alguns será obrigação) às universidades de se transformarem em Fundações de Direito Privado podendo (ou devendo?!) buscar capitais particulares para seu funcionamento. “É a morte da instrução pública”, reclamam os manifestantes. Realmente a situação é preocupante, considerando que a reforma da Instrução está estritamente ligada ao Ministério da Economia. Há quem diga que o verdadeiro criador da reforma seja Giulio Tremonti, Ministro da Economia. De fato, a reforma está ligada ao ministério por meio de uma cláusula de salvaguarda, segundo a qual se as escolas não conseguirem atuar os cortes previstos, receberão sempre menos recursos financeiros do Estado. Fica claro que a reforma não é movida pela vontade de melhorias pedagógicas, mas unicamente por motivos de caixa, o que resulta em uma proposta inaceitável por parte da população italiana.

Em meio a tal turbulência, uma moção do Partido da Liga Norte, aprovada pela Câmara de Deputados no dia 14 de outubro, provocou ainda mais indignação entre os italianos. Segundo a moção, crianças estrangeiras residentes que não superarem o teste de conhecimento da língua italiana não poderão estudar com as crianças italianas, mas deverão estudar em turmas separadas, chamadas “turmas-pontes”, para não atrapalharem o aprendizado dos alunos italianos. A Liga Norte, partido conhecido também pela xenofobia e tendências racistas, chamou tal proposta de política da “discriminação transitória positiva”. Pergunto-me se uma discriminação, mesmo “transitória” (?), possa ter qualquer valor numa democracia. Walter Veltroni, atual líder as oposição, afirmou que o governo Berlusconi esqueceu que o povo italiano é um povo de imigrados. Durante o fascismo, um sacerdote italiano, Padre Lorenzo Milani, escreveu criticando as políticas de discriminação: “Se vocês pensam de ter o direito de dividir o mundo entre italianos e estrangeiros, então eu vos direi que, segundo a vossa mesma lógica, eu não tenho Pátria e reivindico o direito de dividir o mundo em deserdados e oprimidos de um lado, e privilegiados e opressores de outro. Os deserdados são a minha Pátria, e os opressores são os meus estrangeiros”. Infelizmente, trata-se de uma reflexão que voltou a ser atual.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Diálogo sul-sul - Brasil, Índia e África do Sul

O presidente Lula participará hoje, dia 15 de outubro, junto com o primeiro-ministro indiano, Manmohan Singh, e com o novo presidente da África do Sul, Kgalema Motlanthe, da III Cúpula do Fórum de Diálogo Índia-Brasil e África do Sul (IBAS), que se realizará na capital indiana, Nova Déli. Este importante Fórum de Diálogo, que envolve três países localizados no hemisfério sul, foi formalizado pela “Declaração de Brasília”, emitida em 6 de junho de 2003 pelos Chanceleres dos três países. A proposta do IBAS visa contribuir à construção de um ordenamento internacional mais equilibrado, com maior participação do eixo sul-sul, limitando, desta forma, a dependência tradicional ao eixo norte. Outro objetivo do IBAS é potencializar a cooperação trilateral visando ao fortalecimento do intercâmbio econômico, comercial e científico-tecnológico. O terceiro objetivo do Fórum é beneficiar outros países menos desenvolvidos, por meio da criação de um Fundo de Combate à Fome e à Pobreza. Projetos de ajuda em favor da Guiné-Bissau e Haiti já estão sendo desenvolvidos.

A Índia, o Brasil e a África do Sul são países certamente muito diferentes do ponto de vista histórico e cultural, mas que apresentam também numerosos fatores de aproximação: os três possuem governos democráticos; são potências regionais que trabalham para aumentar sua participação internacional; os três sofrem com profundas desigualdades sociais, o que estimula a aceleração de seu crescimento econômico; possuem parques industriais consolidados, elementos básicos de cooperação nas áreas de ciência e tecnologia.

Os Chefes de Estado e Ministros do Fórum já se encontraram duas vezes: a I Cúpula se realizou em Brasília, em 2006; a II, no ano seguinte, na África do Sul.

Para esta III Cúpula foram criados 16 grupos de trabalho envolvendo, entre outras, as áreas de administração política, energia, mudanças climáticas. Também participam do Fórum, empresários, parlamentares, intelectuais para que o diálogo trilateral envolva efetivamente todos os setores da sociedade. Está prevista a assinatura de nove acordos de cooperação trilateral nas áreas de meio ambiente, turismo, propriedade intelectual, ciência e tecnologia, assentamentos humanos, igualdade de gênero, normas e regulamentos técnicos, transporte marítimo e aviação civil. Após a conclusão da III Cúpula, deverá ser divulgada uma carta conjunta sobre grandes temas atuais, como o da crise financeira internacional e o da reforma da ONU.

Os três países lutam pela ampliação dos lugares permanentes no Conselho de Segurança da ONU, reservados, até hoje, somente a 5 países: Estados Unidos, Reino Unido, França, Rússia e China. Os atuais candidatos aos assentos permanentes são: Índia, Brasil, Alemanha e Japão. A África do Sul não conseguiu ter ainda o consenso do continente africano para lançar sua candidatura. A escolha do Brasil como candidato ao Conselho de Segurança da ONU é símbolo do reconhecimento do status internacional alcançado pelo país. O crescimento da atuação internacional do Brasil deve-se ao empenho dos dois últimos presidentes: Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. FHC inaugurou uma política externa de tipo presidencial (presidente protagonista) - que saiu dos moldes do projeto nacional-desenvolvimentista -, priorizando a integração sul-americana e a busca de cooperação multilateral. O presidente Lula tem o mérito de ter dado uma nova dimensão à diplomacia brasileira, ampliando suas relações fora dos circuitos tradicionais EUA-União Européia, e buscando parceiros entre países emergentes como China, Índia, África do Sul, países do Oriente Médio, etc. O Brasil é reconhecido como interlocutor de respeito nos círculos diplomáticos e empresariais, interlocutor que busca os próprios interesses nacionais, mas sem abrir mão dos princípios éticos que deveriam nortear as relações internacionais.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Diante da grave crise financeira que está atravessando os Estados Unidos e, conseqüentemente, os países cuja economia está estritamente ligada à da superpotência, muitas hipóteses foram levantadas, profecias ousadas foram arriscadas. “É o fim do capitalismo”, lia-se em alguns jornais estrangeiros. “Acabou a democracia nos Estados Unidos”, escreviam outros. Entre tantos artigos, encontrei, no jornal italiano Il Sole 24 Ore, uma entrevista muito interessante feita a Paul Kennedy, historiador britânico professor da Universidade de Yale e autor do best-seller “Ascensão e Queda das Grandes Potências”. Nesta obra, de 1988, Paul Kennedy já previa a inevitabilidade do declínio daquela que ele chama de super-hiper-potência. Após vinte anos, ele confirmou seu pensamento sobre o futuro americano, mas, ao mesmo tempo, alertou contra prognósticos exagerados e dramáticos demais.

“Devemos distinguir”, explicou Kennedy, “entre declínio secular e incidentes de percurso por quanto sejam graves. A crise financeira de 2008 é dramática. Provoca uma nova rachadura nos pilares da super-hiper-potência americana. Prevejo que, em novembro, o Congresso permanecerá com forte maioria democrática e ganhará Barack Obama. Juntos, colocarão muitos esparadrapos naquelas rachaduras. Mas, quanto aconteceu, confirma o lento declínio estadunidense, não sua queda. A América não voltará mais aos níveis de grandeza de 1945, quando era o único país sólido após a Segunda Guerra mundial. O seu declínio vê a contemporânea ascensão de outras potências, como a China ou a Índia. Mas isto não mudará de imediato e em tempos rápidos o seu papel de grande potência”.

Segundo Kennedy, a história é clara: “As grandes potências estruturadas - como o império Otomano, aquele de Habsburgo ou o Britânico - não caíram de um dia para outro. Sofreram colapsos financeiros, derrotas militares, até humilhações, mas, depois, foram para frente por longo tempo”. Kennedy lembra que, no século passado, havia impérios sólidos e impérios “passageiros” - como o fascista, nazista, japonês e soviético - de breve duração justamente porque não possuíam uma base global econômica e política, diferentemente da América, que permanece hoje uma potência estruturada. “Há quem disse estupidamente”, continua Kennedy, “que com esta crise chegamos ao fim da democracia na América, ao fim do capitalismo como o conhecemos. Os exageros de sempre. Tais pessoas esquecem que os Estados Unidos possuem 700 bases militares no exterior e 200 mil soldados no mundo, além das tropas alinhadas no Irã e Afeganistão; possuem os melhores centros de pesquisas universitários; investem em pesquisa e desenvolvimento mais que qualquer outro; possuem um balanço militar anual de mais de 700 bilhões de dólares para 2008, valor equivalente ao pacote de ajudas. Esquecem que a América possui um perfil demográfico forte: a população cresce e a convivência entre as raças é sólida”.

Kennedy assegura que a democracia e o capitalismo americanos não estão ameaçados pela crise de Wall Street ou pela recessão que está chegando. Assim como a América não se tornará um país “socialista” após o pacote de ajudas e as nacionalizações como temem alguns republicanos da extrema direita ou como profetizam alguns ideólogos da esquerda na Europa. Assegura também que o capitalismo de mercado está destinado a permanecer o paradigma de fundo. Kennedy: “Eu acredito que Obama no final ganhará pela sua disciplina, coerência, liderança e pela crise econômica. Será ele o novo paradigma que regenerará a América. O impacto de uma sua vitória no mundo será enorme. Até inimaginável. A China não conseguirá entender, explicar-se aquela vitória; o Japão ficará perplexo; para o Irã e o Oriente Médio as cartas da política serão novamente distribuídas e misturadas. O passo para frente será grande. E, talvez, quem sabe, justamente naquele momento de nova fronteira reencontrada, a América poderá começar a entender que deverá ser seletiva no seu papel hegemônico. Não sei se Obama fará como Felipe II da Espanha”, conclui Kennedy, “mas, às vezes, para preservar o poder será preciso escolher algumas áreas de influência e renunciar a outras. Felipe II escolheu suas prioridades no cume do seu poder. E a sua permaneceu como grande lição para retardar o declínio de uma grande potência”.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

A "Revolución Ciudadana" do Equador

Neste domingo, dia 28 de setembro, a maioria dos dez milhões de eleitores equatorianos (70%) aprovou o projeto de uma nova Constituição para o país.

O presidente Rafael Correa, desde sua eleição, em novembro de 2006, lutou para a “refundação do Equador” sob a égide do “socialismo do século XXI”. A nova Constituição seria, no seu parecer, a base para lançar uma verdadeira Revolução Cidadã capaz de garantir ao povo equatoriano um futuro mais justo e feliz.

A nova Carta Constitucional, vigésima desde a independência do Equador da Espanha, compõe-se de 444 artigos, entre os quais alguns se sobressaem pelo seu caráter inovador em retomar valores peculiares da cultura indígena equatoriana. A Constituição promete desenvolver o buen vivir ou sumak kawsay na língua indígena, conceito da cosmologia indígena que resume um conjunto de valores característicos de uma vida em harmonia com a natureza. Pela primeira vez em uma constituição, a natureza tornou-se sujeito de direito. O artigo 71 afirma que “a natureza ou Pachamana, onde se reproduz e realiza a vida, tem o direito a que se respeite integralmente sua existência, sua manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estruturas, funções e processos evolutivos”.

Os artigos-chave da Constituição prometem mudar radicalmente o curso político do país: fortalecimento do Executivo, por meio do qual vigerá o controle estatal sobre os setores do país considerados estratégicos como petróleo, mineração, telecomunicações e agricultura; a defesa da pequena propriedade privada, medida esta que comportará a expropriação e redistribuição das terras não produtivas e a luta aos latifúndios; a proibição de instalação de bases militares estrangeiras no território equatoriano. Com esta última medida, o presidente Correa decidiu colocar fim à base militar americana, em Manta, cidade portuária e local estratégico para o controle do tráfico de drogas. O uso de drogas será considerado, de agora em diante, problema de saúde pública e não mais crime.

Após o resultado do referendum de domingo, estão previstas novas eleições para todos os cargos, inclusive aquele de presidente. Rafael Correa não parece estar preocupado com o resultado das próximas eleições, pois conta com um índice elevado de aprovação, principalmente entre as camadas mais pobres que representam 60% da população do país.

Se tudo correr segundo os planos do presidente, a Revolução Cidadã desejada por ele transformará o Equador num estado centralizador que administrará, preservará e explorará seus recursos naturais sem ingerências estrangeiras. O Banco Central deixará de ser autônomo e a gestão da política monetária nacional passará para o presidente Rafael.

Formado em economia junto à Universidade Católica de Santiago de Guayaquil, em 1991 obteve o Master em Econômica na Universidade de Louvain, na Bélgica. Completou sua formação obtendo o Doutorado em economia na Universidade de Illinois, nos EUA. Em 2005, foi ministro das Finanças sob o governo Alfredo Palácio. A oposição acusa Correa de querer copiar modelos políticos destinados à falência, como os dos vizinhos Chavez e Morales, respectivamente presidentes da Venezuela e da Bolívia. É verdade que a Revolução Cidadã de Correa faz parte do desígnio político de inspiração bolivariana comum aos três estados, mas das três propostas políticas, a de Correa resulta certamente a menos radical. Ao contrário de Chavez, o estilo político de Correa é menos personalista e mais concentrado na construção de um Estado estável. No caso da Bolívia, as mudanças da nova constituição equatoriana são menos radicais daquelas propostas pelo projeto de constituição boliviana. Com efeito, enquanto Evo Morales propôs mudanças estruturais complexas no que diz respeito à autonomia dos indígenas, Correa limitou-se a reconhecer a identidade cultural dos grupos indígenas. O povo está do seu lado, mas os desafios que ele enfrentará para cumprir suas promessas não podem ser subestimados. Precisará convencer os grupos de oposição, demonstrando que a Revolução Cidadã favorecerá de fato a governabilidade e o desenvolvimento do povo equatoriano.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

A ONU, os direitos humanos e a jornada internacional da paz

No último domingo, dia 21 de setembro, festejamos a Jornada Internacional da Paz, instituída oficialmente pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas em 2001. Ao instituir esta comemoração, a Assembléia Geral da ONU declarou que a Jornada seria observada como uma jornada mundial de cessar-fogo e de não-violência, durante a qual todas as nações e povos da terra estariam convidados a cessar as hostilidades. A Jornada Internacional da Paz adquiriu, neste ano, um significado particular, pois se comemoram também o 60º aniversário da Declaração dos Direitos Humanos e o 60º aniversário das operações de manutenção da paz. A Jornada Internacional da Paz deste ano teve como tema justamente as relações entre a paz e os direitos humanos, temas inseparáveis na atual situação internacional. O Secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, na sua mensagem em ocasião da Jornada Internacional, sublinhou o quanto o respeito dos direitos humanos seja essencial para a manutenção da paz. Infelizmente ainda há muitas pessoas que sofrem demais com a violação dos direitos humanos, sobretudo durante os conflitos armados.

Nestes dias, encontra-se reunida, em Nova York, a 63ª sessão anual da Assembléia Geral da ONU. No seu discurso de abertura da Assembléia, o presidente de turno, o nicaragüense Miguel D’Escoto Brockmann, ex-chanceler sandinista, pediu urgentemente a democratização das Nações Unidas e anunciou planos para revitalizar o poder desta Assembléia que reúne 192 nações. Tal pedido recebeu o apoio unânime dos membros da Assembléia, pois há anos discute-se a urgência de uma reforma da ONU, cuja estrutura, principalmente no que diz respeito ao seu Conselho de Segurança, não responde mais às necessidades do atual contexto internacional. A maior queixa dirigida à ONU é a falta de representatividade. Ela funciona com a mesma estrutura criada em 1945, após a Segunda Guerra Mundial. Nestes 63 anos, porém, o contexto internacional mudou e muito. Inúmeras nações, que naquela época estavam ainda sob o jugo colonial, conquistaram sua independência; terminou o bipolarismo que caracterizou a época da Guerra Fria e que dividia o mundo em dois blocos. Hoje os atores internacionais não são somente os Estados, há outros protagonistas no cenário internacional: organizações das sociedades civis, forças sociais e econômicas que não têm voz neste organismo de fundamental importância para a manutenção da paz mundial. A Organização das Nações Unidas está nas mãos de apenas 5 membros permanentes que detêm poder de veto (Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, China e Federação Russa) e que, ao mesmo tempo, estão entre os maiores produtores de armas. Seus interesses econômicos e geopolíticos condicionam a “neutralidade” na resolução de conflitos com outros países, impedindo a realização daquela que deveria ser a primeira tarefa desta Organização: a promoção dos direitos humanos.

Em 2001, quando os Estados Unidos invadiram arbitrariamente o Iraque, a ONU viveu sua maior crise de legitimidade. Parecia ter seus dias contados. Em sua defesa, ergueu-se o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello. Mesmo reconhecendo a fraqueza da Organização pela qual trabalhava há mais de 30 anos, Sérgio lembrou a todos que a ONU permanecia o único instrumento capaz de re-introduzir normas de moralidade política no curso da história. Era necessária, segundo ele, a aplicação do Direito não somente no âmbito doméstico como também no internacional. Sérgio de Mello indicou os Estados como os principais responsáveis pela defesa dos direitos humanos, afirmando a necessidade de se colocar de uma vez por todas as pessoas no centro das atenções e preocupações da comunidade internacional. Os Estados teriam como obrigação resolver suas controvérsias de forma pacífica, de maneira a não ameaçar a paz e segurança internacionais. Tal é também o parecer do papa Bento XVI que, no dia 24 de agosto, após a eclosão da crise no Cáucaso, indicou “a força moral do direito” como caminho para “dirimir as controvérsias”.

Quando a ONU conseguir representar os interesses de todos os povos da terra, ela terá condições de desempenhar o papel pensado para ela por Sérgio Vieira de Mello: o de ser a voz da consciência do mundo.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Crise na Bolívia - do separatismo ao diálogo nacional

A Bolívia, um dos países mais pobres da América Latina, está enfrentando há algumas semanas uma grave crise interna, que causou a morte de mais de 30 pessoas. Crises desta natureza não são novidade na Bolívia. O país tem uma longa tradição de instabilidade governativa. Desde sua independência da Espanha, ocorrida em 1825, até o fim da última ditadura militar, em 1982, o país enfrentou 193 golpes de estado.

A Bolívia sempre sofreu com um nível de desigualdade muito alto. A pobreza atinge, sobretudo, as populações indígenas, enquanto a minoria branca - que constitui a elite empresarial - detém o monopólio das riquezas naturais da Bolívia. Esta rivalidade entre as populações indígenas e a minoria branca remonta à época do domínio espanhol quando a maioria da população autóctone foi reduzida ao estado de escravidão ou obrigada a trabalhar como mão-de-obra barata. Ao longo de sua história, novos dominadores estrangeiros ocuparam o lugar dos espanhóis em terras bolivianas: atualmente são as empresas multinacionais que desfrutam da riqueza natural do território, principalmente petróleo e gás natural, recursos localizados na região oriental do país, chamada de meia-lua pela sua configuração geográfica.

A economia boliviana cresceu somente em um lado do país, deixando o outro sem recursos e fontes de sustento. Com efeito, em 1990, o governo do presidente Sanchez de Lozada decidiu fechar as minas do país e colocou fortes restrições ao cultivo da coca, seguindo indicações norte-americanas. Na época do estabelecimento da democracia, o país aproximou-se dos Estados Unidos, que fizeram da Bolívia uma de suas bases na América Latina. A situação mudou, porém, com a chegada de Evo Morales - o primeiro presidente índio, de etnia aymara. Desde o início de seu governo, o principal objetivo de Morales foi lutar pela nacionalização dos recursos energéticos do país e, consequentemente, pela defesa dos direitos das populações indígenas que, até então, não puderam beneficiar-se das riquezas naturais do seu próprio país.

As manifestações violentas destas últimas semanas foram sinais da forte oposição da elite empresarial às tentativas de Morales de redistribuição da riqueza. Os governadores das províncias rebeldes, que reclamam a autonomia administrativa do governo central, indicaram como principais motivos dos protestos a rejeição do aumento dos impostos sobre os hidrocarbonetos, em favor de um projeto social do governo central, e a recusa de uma nova Constituição que, segundo os governadores oposicionistas, teria sido elaborada pela Assembléia Constituinte sem a presença de representantes de suas províncias.

Tal Constituição – que deverá ainda ser aprovada por referendum popular – prevê maior autonomia das populações indígenas e mais poder para os movimentos sociais. A Constituição prevê também a redução das propriedades fundiárias que estão localizadas principalmente nas províncias oposicionistas. Diante de tal perspectiva, as províncias que possuem já um poder econômico invejável tentaram agregar também poder político, o que lhes facilitaria para salvaguardar seus interesses econômicos. A província de Santa Cruz de la Sierra, onde há forte oposição, detém 1/3 do PIB boliviano, gerando 40% dos impostos arrecadados pelo Estado. O preconceito étnico, os interesses econômicos e políticos, nacionais e internacionais arriscam manter a Bolívia numa situação de instabilidade política que impede seu crescimento econômico e social.

Os efeitos da atual crise atingiram também o âmbito internacional, pela ruptura das relações diplomáticas com o governo dos Estados Unidos, acusado de fomentar a divisão entre as regiões mais desenvolvidas e o governo central. O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, quis imediatamente demonstrar sua solidariedade ao presidente Morales, expulsando o embaixador americano na Venezuela e oferecendo ajuda militar ao país vizinho. Evo Morales, porém, recusou tal ajuda e preferiu escolher a estrada do diálogo com os governadores das províncias oposicionistas. Nesta segunda-feira, maravilhou-se em receber o apoio de todos os países integrantes da Unasul, que condenaram as manifestações violentas e reconheceram a integridade do território boliviano. Tomara que a opção de Morales pelo diálogo e o apoio da Unasul convençam as províncias da meia-lua a trocar o estéril separatismo pelo crescimento para todos os bolivianos, de todas as raças.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Eleições no Paquistão

O vencedor da corrida presidencial no Paquistão, nas eleições deste sábado, dia 6 de setembro, foi Asif Ali Zardari, líder do Partido do Povo do Paquistão (PPP) e viúvo de Benazir Buttho, mulher-símbolo do sonho democrático paquistanês, assassinada em um atentado terrorista em dezembro do ano passado. Zardari derrotou Saeed Zaman Siddiqui, o candidato de Nawaz Sharif, ex-premiê e líder do segundo maior partido no Paquistão (Liga Muçulmana do Paquistão Nawaz Pal-N). No início do ano, os dois maiores partidos do país, o PPP e o Pal-N decidiram coligar-se para preparar o impeachment contra o então presidente Musharraf, acusado de violação à Constituição. No mês de agosto, Musharraf decidiu renunciar para evitar o impeachment. A coligação entre os dois partidos teve vida curta, devido, sobretudo, à rivalidade e desconfiança existentes entre as duas correntes políticas. Nawaz Shafir, que decidiu romper a coligação, acusou Zardari de não ter respeitado as promessas feitas, especialmente em relação à reintegração dos juízes que foram afastados durante o governo de Musharraf. O governo de Zardari não começa bem. Sobre ele, gravam sérias acusações de atos de corrupção que teriam acontecido durante os dois governos de sua esposa, quando ele foi ministro por duas vezes. O apelido pelo qual é conhecido, “Senhor 10%”, não deixa dúvidas quanto à sua fama junto à população paquistanês. Além disso, ele foi acusado de ter matado o irmão de sua esposa. Zardari foi preso por mais de dez anos, mas nunca foi condenado. Após ter sido libertado, em 2004, refugiou-se nos Estados Unidos, longe da esposa, sob alegação de tratamento médico. Voltou ao Paquistão com sua esposa Benazir, em 2007, quando Musharraf cancelou, com uma anistia, todos os crimes cometidos por políticos e burocratas de 1988 a 1999. Os dois, porém, não voltaram ao mesmo tempo. O entourage de Benazir aconselhou-a a voltar sozinha, pois o fato do esposo ser uma pessoa bastante contestada no país, poderia, de certa forma, ofuscar o esperado retorno da tão amada líder do país. A própria Benazir não avaliava positivamente o papel político do esposo, pois no seu testamento deixou como herdeiro e sucessor de seu legado político não o esposo, mas o filho Bilawal, hoje com 19 anos. A prematura morte de Benazir, porém, mudou, ao menos por enquanto, o destino de Zardari, que sempre permaneceu à sombra de sua esposa. Logo após a morte de Benazir, Zardari impôs-se como co-presidente, ao lado do filho Bilawal, do Partido do Povo do Paquistão. Quando o filho, Bilawal, decidiu voltar a estudar Direito em Oxford, Zardari completou a sua ascensão ao poder até chegar à eleição. A sua campanha eleitoral, naturalmente, apoiou-se fundamentalmente no legado de Benazir, que permanece como símbolo inconteste do sonho de democracia do povo paquistanês. Ele promete realizar esse sonho, que foi o motivo propulsor pelo qual, em 1967, o pai de Benazir, Zulfikar Ali Buttho, fundou o Partido do Povo do Paquistão. Por tal causa, pai e filha derramaram o sangue. Desde a proclamação de sua independência, em 1947, o Paquistão é cenário de guerra civil. Somente nos últimos 12 meses, os ataques terroristas provocaram 1,2 mil mortos. O mesmo Zardari escapou de um atentado na última semana. Os desafios que ele deverá enfrentar são extremamente complexos: a crise econômica que mantém o país em uma situação de extrema pobreza; a relação instável e perigosa com o poder militar, protagonista na história paquistanês de golpes de estado e reviravoltas políticas; a rivalidade constante com o Pal-N; e, por último, mas não menos importante, a relação conflituosa do governo paquistanês com os extremistas islâmicos. Os seus líderes já demonstraram, por meio de um atentado no dia do resultado das eleições, de não apreciar tal resultado. Com efeito, Zardari confirmou seu papel de interlocutor do governo americano na luta contra o terrorismo, decepcionando o sentimento antiamericano dos extremistas islâmicos. Após os atentados de 2001, contra as Torres Gêmeas, o Paquistão - tradicional aliado dos Estados Unidos durante a Guerra Fria - voltou a ser um elemento estratégico na política antiterrorista americana. A presença dos contingentes estadunidenses não ajudará certamente Zardari na sua promessa ao povo paquistanês de um futuro de paz e estabilidade política.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

A ditadura das castas

No dia 29 de agosto, as 25 mil escolas católicas da Índia fecharam por 24 horas em protesto contra a onda de violência que envolveu, nas últimas semanas, a população cristã e seus missionários, no Estado de Orissa, situado no leste da República Indiana, junto ao Golfo de Bengala. Igrejas, hospitais e orfanatos cristãos foram destruídos, missionários foram espancados, uma moça que trabalhava num orfanato cristão foi queimada viva. Um padre e uma religiosa, após serem agredidos, foram desnudados e feitos desfilar diante do povo. Mais de 8.000 pessoas tiveram suas casas queimadas. Os autores de tal barbárie são membros de uma organização fundamentalista hindu (Vishwa Hindu Parishad).

Já no ano passado, na véspera do Natal, membros desta organização, liderada por Swami Laxmanananda Saraswati, atacaram uma comunidade cristã. Oito meses após o ataque, no dia 23 de agosto deste ano, o líder hindu foi assassinado por grupos maoístas, na véspera da recorrência do nascimento de Krishna. Os fundamentalistas usaram a morte de seu líder como pretexto para culpar os cristãos, acusando-os de ter se vingado pelo ataque do ano passado. Em seguida, os extremistas hindus atacaram simultaneamente 35 centros cristãos do Estado de Orissa. A polícia não conseguiu conter os atos de violência. O governo do Estado é formado por uma coligação sustentada pelo partido fundamentalista hindu.

Atualmente, a Índia é considerada a maior democracia do mundo. O país oferece centro de excelência na área de tecnologia de informação, exportando seus engenheiros ao mundo inteiro. Porém, o progresso tecnológico e político não conseguiu livrá-la de uma corrupção galopante que se alastra em todo seu território, e que mantém impunes graves atos de violência como os que aconteceram em Orissa.

Na Índia, a modernidade convive com o sistema milenar das castas, que impede a maioria dos indianos de melhorar as próprias condições de vida. A discriminação de casta é proibida pela Constituição, mas rege a vida de 80% de sua população. Cada casta vive separada das outras. O membro de uma casta é definido pelo nascimento. Não se pode mudar de casta ou subir na escala social. Quem rompe tais regras é banido de seu grupo e perde o direito ao trabalho. Quatro eram as castas tradicionais: a casta alta, constituída pelos sacerdotes (brâmanes); a casta constituída pelos guerreiros, que se ocupavam da segurança do povo (kshatriyas); a dos comerciantes (vaishyas); e, por último, a casta formada pelos agricultores (sudras). Além do sistema de divisão da sociedade hinduísta em castas, há, também, os fora da casta (os excluídos) considerados impuros, chamados também de Dalit, e os tribais ou Advasi, ambos usados como escravos pelas castas nobres.

A população do estado de Orissa é constituída por 40% de tribais e Dalit, razão que explica o fato de Orissa ser um dos estados mais subdesenvolvidos da Índia. As comunidades cristãs, nestes últimos anos, ocuparam-se justamente daqueles que os hinduístas consideram impuros e, por isso, nem podem ser tocados. Ofereceram-lhes educação, ajudando-os a reencontrar sua dignidade e suas potencialidades. Graças a esta ajuda, eles começaram a reivindicar seus direitos, recusando a exploração e a opressão econômica e social das castas mais altas. De fato, em todas as localidades de Orissa onde estão presentes instituições cristãs, nos últimos anos foi registrado certo progresso socioeconômico, mudanças sociais recusadas pelo sistema cristalizado das castas hinduístas. Os cristãos foram acusados de usar meios fraudulentos para conseguir prosélitos e convencer os habitantes da região a se converter. Na realidade, as conversões foram poucas. O número de cristãos é inferior a 1% da população de Orissa. Mas eles precisam encontrar desculpas para combater o que mais incomoda os fundamentalistas hindus: a perda do controle sobre o sistema milenar de castas. Nos últimos anos, o grupo dos fanáticos e dos intolerantes hindus parece estar ganhando força no território indiano. Contudo, muitas pessoas, não somente cristãs, mas também de outras religiões - budistas, muçulmanos, e, também, grupos hinduístas que não compartilham o fanatismo e a intolerância dos seus correligionários -, demonstraram solidariedade e apoio às vitimas cristãs. Se alguma culpa os cristãos tiveram, foi somente aquela de ter devolvido um pouco de esperança aos que não tinham mais esperança, ajudando-os, após tanto sofrimento e opressão, a enxergar uma luz de igualdade no fim do túnel.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Olimpíadas de Pequim - a China ganhou muito mais que medalhas de ouro

Concluiu-se, no domingo passado, a XXIX edição das Olimpíadas, sediada em Pequim.
Hospedar este evento assumiu, para a China, um significado que ultrapassou as fronteiras esportivas. Por meio dos Jogos Olímpicos, a China pôde celebrar triunfalmente a sua entrada no concerto das nações. A cerimônia de abertura constituiu o bilhete de visita oferecido em grande estilo ao mundo. E que estilo! Dificilmente outras nações poderão igualar o espetáculo que, no dia 8 de agosto, encantou o mundo. A harmonia de cores e formas, a disciplina dos milhares de integrantes das coreografias que lembravam os momentos mais importantes da história milenar chinesa, deixou em quem assistia a sensação de estar diante de um show inimitável. Estavam presentes quase todos os presidentes e primeiros ministros dos Estados participantes dos Jogos Olímpicos e tal presença para o governo chinês foi uma das principais vitórias: o reconhecimento internacional por excelência.

A China também saiu vitoriosa na conquista das medalhas de ouro. Foram 51 medalhas de ouro contra as 36 americanas. Ela conseguiu, portanto, afirmar-se também como superpotência esportiva.

Na cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos, o presidente da China, Hu Jintao estava satisfeito. A missão de demonstrar ao mundo o valor da China estava cumprida. No seu discurso de agradecimento, Hu Jintao exaltou os princípios destes Jogos: o espírito de amizade, de solidariedade e de paz. Ele sublinhou a importância da compreensão mútua e o valor da amizade que une o povo chinês e os outros povos da terra.

Contudo, estas Olimpíadas ganharam também o primado em críticas e manifestações públicas de reprovação por parte da opinião pública internacional. Os protestos pró-Tibete e os atentados terroristas na província muçulmana de Xinjiang representaram humilhantes espinhos para o governo chinês. A opinião pública internacional esperava que estes Jogos trouxessem um melhoramento no respeito dos direitos humanos por parte do governo chinês. Deste ponto de vista, os Jogos Olímpicos foram uma decepção. A máquina de férreo controle das autoridades chinesas funcionou de forma capilar e sem tréguas. O governo chinês não podia permitir que nada estragasse o objetivo mais importante deste evento mundial tão longamente esperado.

Após o humilhante período do colonialismo europeu, durante o qual a China sofreu contínuos ataques à sua soberania por parte das potências ocidentais que a invadiram e a exploraram economicamente, agora a China podia se colocar no mesmo nível das outras nações. Talvez, para nós ocidentais, acostumados a uma tradição de liberdade de expressão, de natural prioridade do individual em relação ao coletivo, resulte difícil entender o sacrifício dos cidadãos chineses em prol da nação chinesa. Não quero assim justificar as repressões das manifestações de protestos, nem as escolhas arbitrárias do governo chinês para que tudo, nesses Jogos, estivesse perfeito. Fez a volta ao mundo, logo após a cerimônia de abertura, a notícia da substituição da menina (cantora) dos dentes tortos por uma menina esteticamente perfeita que simplesmente abria a boca sem emitir um único som, enquanto a voz celestial da menina dos dentes tortos ecoava pelo estádio. A China foi acusada de falsidade, de esconder o que é ruim, por trás de imagens aparentemente perfeitas. Tudo isto é verdade. A China é o país das contradições. Mas existe um país no mundo onde não há contradições? Considero naturalmente justo fazer pressões para que a situação de milhares de chineses melhore, mas me pergunto se essas críticas e pressões internacionais são sempre verdadeiramente altruístas ou escondem objetivos de interesse político-econômico?

Estas Olimpíadas uniram o povo chinês e alimentaram, como não acontecia há décadas, seu espírito nacionalista. Uma pesquisa americana revelou que os chineses são o povo mais satisfeito da própria evolução. Com 86% de otimistas, mantém o mais alto índice de confiança do planeta. Certamente estes Jogos ajudaram, pelo menos, a atingir esta meta.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Sérgio Vieira de Mello - o intelectual orgânico das relações internacionais

Recorreu ontem, 19 de agosto, o 5º aniversário da morte de Sérgio Vieira de Mello, diplomata brasileiro morto com outros 21 funcionários das Nações Unidas durante um atentado terrorista contra a sede da ONU, em Bagdá, no Iraque. Nascido no Rio de Janeiro, filho de diplomata, estudou filosofia em Paris. Aos 21 anos, já trabalhava na ONU. Durante os 33 anos como funcionário das Nações Unidas, atuou principalmente junto ao Alto Comissariado para os refugiados da ONU, em Genebra, na Suíça. Participou de operações humanitárias em países marcados per graves conflitos, como Sudão, Bangladesh, Chipre, Moçambique e Peru. Nos anos 80, o reconhecimento oficial do seu brilhante serviço diplomático e humanitário veio por meio da nomeação a conselheiro político sênior das forças da ONU no Líbano. Nos anos 90, trabalhou com os refugiados do Camboja. Em 1999, Sérgio foi enviado ao Kosovo, onde assumiu a função de representante especial do secretário geral da ONU. Na mesma função, trabalhou para a resolução do conflito no Timor Leste, ajudando, sempre em cooperação com o povo timorense, a construir as bases do novo estado e promover o retorno de milhares de refugiados. Permaneceu no país até 2002, quando o Timor Leste proclamou sua independência. Naquele ano, foi nomeado alto comissário de direitos humanos da ONU. Em 2003, porém, afastou-se desta função para atuar como representante especial do secretário-geral da ONU, no Iraque, no contexto da invasão americana ao país. Objetivo da missão da ONU era trabalhar para restabelecer a paz e ajudar o país a construir um governo democrático após o fim do conflito. Mesmo percebendo que esta missão teria sido particularmente difícil, Sérgio Vieira de Mello aceitou o desafio. Contudo, seu serviço no Iraque durou somente quatro meses. O atentado do dia 19 de agosto de 2003 colocou fim a uma vida de dedicação em prol da paz e da solidariedade humana. Pelas peculiaridades de sua atuação internacional, Sérgio Vieira de Mello pode ser definido como um intelectual orgânico das relações internacionais. O conceito de intelectual orgânico surgiu nas primeiras décadas do século 20, por meio de Antonio Gramsci, escritor, jornalista e político italiano perseguido e morto pela ditadura fascista. No intuito de definir qual deveria ser o papel dos intelectuais na sociedade, Gramsci identificou dois tipos de intelectuais: o primeiro era constituído pelos intelectuais tradicionais, entendidos como grupo autônomo e independente, distante das massas populares. O segundo tipo, cuja atuação ele defendia, eram os intelectuais cuja atividade e pensamento entrelaçava-se com o grupo social ao qual pertenciam. O adjetivo orgânico era devido ao fato de considerar tais intelectuais como parte de um organismo vivo, a sociedade onde viviam. Eram, portanto, não mais intelectuais relegados a uma elite isolada, mas intrinsecamente ligados às organizações políticas, culturais e sociais do seu tempo. Tais intelectuais deviam ser - segundo Gramsci - construtores, organizadores e educadores permanentes das massas populares, interligando sua ação política com seus conhecimentos. Sergio Vieira de Mello mergulhou de corpo e alma no seu trabalho, trocando a comodidade de um lugar seguro e burocrático pelo campo de batalha de países e populações devastadas pelo conflito e pela violência. Inspirado nos princípios filosóficos de Kant, Sergio Vieira de Mello acreditava na possibilidade do fim dos conflitos por meio da adoção de um direito cosmopolita regulador das relações internacionais. Colocou a serviço da comunidade internacional as suas habilidades de negociador, tentando dialogar também com os ditadores. Mesmo tendo consciência da fragilidade da organização pela qual trabalhava, procurou atuar, de forma realista, mas incisiva, pela defesa dos valores de relações internacionais marcadas pelo respeito e pela solidariedade. Segundo seus colegas de trabalho, Sérgio atuava uma “diplomacia silenciosa”, longe dos holofotes. O seu objetivo foi sempre aquele de trabalhar para construir bases sólidas de segurança global. Como intelectual orgânico, Sérgio Vieira de Mello foi protagonista ativo de sua história e da de muitos povos, ao qual ele dedicou, com generosidade e inteligência, a sua própria vida.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Raízes do conflito Geórgia-Rússia

No final da semana passada, enquanto a atenção mundial estava voltada à abertura espetacular dos Jogos Olímpicos de Pequim, em uma pequena região do Cáucaso eclodia mais um conflito regional. Tropas do exército da Geórgia invadiram o território da região autônoma da Ossétia do Sul - caracterizado por separatismos anti-georgianos - provocando a reação militar da vizinha Rússia. A região autônoma é ocupada por etnia filo-russa que representa 70% de sua população. Os 30% restantes são georgianos. Em 1991, a Ossétia do Sul já fora cenário de guerra civil. No ano seguinte, a região proclamou a própria independência da Geórgia. Contudo, tal ato unilateral não foi reconhecido por nenhum membro da comunidade internacional. Desde então, a população ossetiana do sul quer unir-se à vizinha Ossétia do Norte, que pertence à Federação Russa. A Geórgia tem no seu território outras duas minorias étnicas filo-russas, nas regiões de Adjária e de Abkházia. Os habitantes das três regiões autônomas são culturalmente mais próximos à Rússia que à Geórgia. Com a Rússia, eles compartilham o idioma, o estilo de vida, tanto que receberam o passaporte russo e, conseqüentemente, o direito de voto nas eleições da Rússia. Poderíamos nos perguntar, então, porque eles não pertencem à Federação Russa? Para entender melhor a raiz do problema, ocorre voltar aos anos 20, na época do governo de Stalin. Ele planejava a construção de uma federação, liderada pela Rússia. Segundo seu projeto, a federação seria formada por Rússia, Ucrânia, Bielorússia e a região do Cáucaso (entre os países do Cáucaso estava a Geórgia, sua terra natal). Stalin considerava fundamental, para manter a liderança russa, a existência de conflitos étnicos nas próprias repúblicas integrantes da federação. Os conflitos étnicos dariam legitimidade ao governo centralizador de Moscou de intervir, inclusive militarmente, para defender os próprios interesses. Por tal motivo, em 1921, quando Stalin invadiu a Geórgia, ele anexou ao país invadido a Ossétia do Sul e a Abkházia, cujas populações odiavam os georgianos. Com a desintegração da URSS, as fronteiras já existentes foram respeitadas, sem levar em conta a vontade das populações. A Geórgia tornou-se uma nação independente. Nos primeiros anos, após a dissolução da União Soviética, ela foi liderada por um presidente de direita e extremamente nacionalista, que afastou o país da Rússia, recusando-se a integrar na Comunidade de Estados Independentes (CEI), liderada por Moscou e formada por ex-repúblicas soviéticas.

Durante a década de 1990, após o fim da guerra civil, a situação se manteve estável. A Rússia atravessava sérios problemas econômicos e políticos e, por isso, dedicou mais atenção à política interna que à externa. Todavia, com a eleição de Vladimir Putin, em 2000, a situação mudou. O presidente Putin lutou pela reafirmação da Rússia como potência regional forte e estável, reforçando sua influência política nos países vizinhos, e despertando, com isso, tensões que pareciam adormecidas. O apoio às minorias étnicas filo-russas foi parte do planejamento político de Putin. A situação na Geórgia agravou-se com a eleição do presidente Mikhail Saakashvili, em 2004. Saakashvili, logo após sua eleição, deixou claro que o seu objetivo era restabelecer o controle total de seu governo sobre as regiões separatistas da Ossétia dos Sul e da Abkházia. Ao mesmo tempo, ele manifestou o desejo que a Geórgia passasse a fazer parte da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), pedindo aos Estados Unidos ajuda para modernizar suas tropas. Naturalmente, os Estados Unidos acolheram imediatamente o convite georgiano, enviando mais de mil militares americanos que, no contexto da guerra ao terrorismo, estabeleceram-se no território georgiano. A presença e o apoio americano à Geórgia agravaram a sensação de perigo por parte da Rússia de se ver cercada por forças americanas já presentes na Ucrânia. Além disso, no território da Geórgia passam os oleodutos e gasodutos para o Ocidente, o que tornou este país filo-ocidental um país estrategicamente importante. A Rússia manifestou várias vezes sua oposição à expansão da OTAN rumo ao seu território. Talvez seja por isso que reagiu com tanta dureza à invasão georgiana da Ossétia do Sul, território sob sua proteção mais moral do que militar. Certamente, num conflito, as responsabilidades nunca estão de um lado só, mas, neste caso, os analistas internacionais estão de acordo em afirmar que Saakashvili errou os cálculos. A Rússia deixou claro que não abandonará os ossetianos filo-russos. Nas Olimpíadas, o abraço, no pódio, entre uma atleta georgiana e uma atleta russa, no último domingo, pareceu-me um sinal de esperança para a resolução definitiva do conflito.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Alexander Solzhenitsyn: a voz da consciência russa

No domingo passado, morreu Alexander Solzhenitsyn, um dos maiores escritores do século XX. Solzhenitsyn nasceu em 11 de dezembro de 1918 na pequena cidade de Kislovodsk, na região do Cáucaso, localizada na então União Soviética. Seu pai morreu durante a guerra, seis meses antes de ele nascer. Desde sua adolescência, manifestou vontade de se tornar escritor. Na cidade onde cresceu não havia faculdades de literatura e as condições financeiras de sua mãe não lhe permitiram mudar-se para Moscou, como ele sonhava. Formou-se em Matemática e Física, em 1941, matérias pelas quais também demonstrara particular aptidão. Solzhenitsyn tornou-se soldado do exército russo, combatendo por dois anos no segundo conflito mundial. Das trincheiras, enviava cartas a um seu amigo de infância, criticando, às vezes, o governo de Stalin. Por essas críticas, Alexander foi preso, em 1945, e condenado a oito anos de prisão nos campos de trabalho forçado. Graças à sua formação matemática, passou os primeiros quatro anos trabalhando num instituto de pesquisas para onde eram enviados prisioneiros cientistas. Depois, porém, foi enviado a um campo de concentração, no gelo do Cazaquistão, onde trabalhou como pedreiro, mineiro e metalúrgico. Neste período foi-lhe diagnosticado um câncer. As suas condições de saúde começaram a piorar. Em 1954, Alexander chegou quase morto à cidade de Tashkent, no Uzbequistão, onde finalmente foi operado e curado. Durante todos esses anos, Solzhenitsyn escrevia, às escondidas, poemas e contos. Ele memorizava os poemas e depois os queimava. Todo dia, usando um terço, declamava seus poemas, um em cada conta, para não os esquecer. Quando alguém perguntava, dizia que estava rezando. Os relatos de sua prisão – que formarão sua obra mais famosa, O Arquipélago Gulag - eram escritos em minúsculas folhas de papel, que eram enterradas, para a polícia não o descobrir. Numa autobiografia, escrita para a ocasião da entrega do Prêmio Nobel da Literatura, ele disse: “Durante todos os anos, até 1961, eu não apenas estava convencido que sequer uma linha por mim escrita jamais seria publicada durante minha vida, mas, também, raramente ousava permitir que meus amigos lessem o que havia escrito por medo que o fato se tornasse conhecido”.

As mudanças políticas na Rússia dos anos 50, mudaram, por alguns anos, o destino de Alexander. De fato, depois da morte de Stalin, em 1956, Nikita Krushev, que assumiu o comando da União Soviética, começou o processo de desestalinização, denunciando abertamente os crimes cometidos por Stalin. Em 1961, em ocasião do XXII Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), o governo convidou os escritores russos a unirem-se à desestalinização.

Solzhenitsyn conseguiu, então, publicar, com a aprovação oficial de Krushev, seu primeiro romance: Um dia na vida de Ivan Denisovic, diário nos campos de trabalho forçado durante a ditadura staliniana. Graças a esse romance, Solzhenitsyn tornou-se conhecido também no mundo ocidental. Continuou suas críticas e, por isso, foi expulso em 1967 da união dos escritores russos. Em 1970, o Prêmio Nobel de Literatura lhe foi dado, mas o governo russo não permitiu que o recebesse. Solzhenistyn não poupou esforços e palavras para denunciar o arbítrio das leis soviéticas e o drama do povo russo transformado pelo regime comunista em “inimigo de si mesmo”, como ele afirmou naqueles anos. Em 1974, após tirar dele a nacionalidade russa, o governo o expulsou. Alexander passou dois anos na Suíça e o resto do exílio nos Estados Unidos, onde permaneceu até 1994. Antes disso, em 1973, em Paris, foi publicado o primeiro volume do seu romance de maior sucesso, o Arquipélago Gulag. Na obra, ele denunciou o sistema arbitrário do regime de Stalin, as prisões, os campos de trabalho forçado. Lutou para que sua obra não fosse instrumentalizada pelos adversários do regime. Era contra qualquer tipo de ideologia, comunista ou não. O que lhe importava era o ser humano. Dizia que “aquilo que rende inestimável e único o ser humano não vem da política, nem da ideologia, nem mesmo das suas próprias qualidades humanas, mas de algo que o homem traz dentro de si”. Solzhenitsyn chamava isso de alma. A fé em Deus - ele pediu para ser batizado em 1957 - o dotou de grande força moral e deu significado à sua missão de escritor. Mesmo após a dissolução da União Soviética, Solzhenitsyn continuou, por meio de seus escritos, a ser a consciência crítica da sociedade russa, fazendo-se porta-voz da dignidade e da liberdade infinita do ser humano.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Uma visita ao mundo da diplomacia

No início de março deste ano, enquanto acabava de escrever minha coluna semanal no Notisul, minha filha entregou-me um envelope com o carimbo do Ministério das Relações Exteriores, o famoso Itamaraty. A carta era assinada por dois embaixadores. Tratava-se de um convite para participar, no mês seguinte, de um Seminário Internacional sobre a China, organizado pelo próprio Itamaraty. O Seminário queria reunir personalidades, diplomatas, intelectuais e professores dos cursos de Relações Internacionais, Ciência Política, História e Economia. Fiquei muito feliz em receber tal convite. Minha alegria aumentou ao saber que o Seminário aconteceria na Cidade Maravilhosa: o Rio de Janeiro! Por incrível que possa parecer, ainda não conhecia pessoalmente o Rio, mesmo residindo há quase 12 anos no Brasil. Dias depois, recebi outra boa notícia: no Seminário seria lançado meu primeiro livro, resultado da minha tese de Doutorado. O título: “Diplomacia e Religião – Encontros e Desencontros nas relações entre Santa Sé e República Popular da China de 1949 a 2005”.

Cheguei ao Rio um dia antes do início do Seminário, pois queria aproveitar para conhecer a cidade. Pena que foi bem na época da epidemia da dengue. Mas o medo da doença não me impediu de aproveitar ao máximo a estada na cidade. Munida de um bom repelente, pude passear um pouco pelas famosas avenidas de Copacabana e pelo bairro de Ipanema.

A primeira vez que vi, pela televisão, os elegantes bairros de Copacabana, Leblon e Ipanema foi numa das primeiras novelas brasileiras que chegou à televisão italiana: Dancing Days. Lembro que, ainda menininha, eu, meus irmãos e primos após fazermos as tarefas da escola, assistíamos à novela imergindo-nos naquele mundo tão distante e diferente. Mais tarde, as histórias dramáticas dos meninos de rua mostraram-me o lado menos poético do Rio de Janeiro. Já morando no Brasil, e acompanhando as crônicas da cidade, infelizmente este lado trágico do Rio continuou a sobressair. Talvez fosse por isso que, até este ano, nunca viajara para lá. Contudo, as sensações mágicas desta cidade, saboreadas por meio das belíssimas músicas de Vinicius de Moraes, Chico Buarque e outros, despertavam uma grande curiosidade. E não fiquei decepcionada. Ao lado das praias tropicais e da natureza exuberante, o que me fascinou profundamente foram as riquezas históricas da cidade. Pude muito apreciá-las durante o Seminário, realizado no antigo palácio Itamaraty, no coração da cidade. O elegante jardim que envolve o palácio me levou aos tempos da chegada da monarquia portuguesa, aos anos da fundação da República do Brasil. Os salões do palácio eram imponentes, majestosos. Lá estava eu, sentada à longa mesa - cheia de microfones e copos de águas - em meio a diplomatas brasileiros, chineses, americanos, argentinos. Ao nosso redor e na sala contígua, centenas de jovens estudantes escutavam o debate sobre a China: a nova potência mundial que cada dia mais surpreende e assusta o mundo. No início, fiquei um pouco temerosa por ter que falar diante de tantos embaixadores e professores ilustres. Afinal, eles podiam contar com décadas de experiência no mundo diplomático e acadêmico. Em comparação a eles, sentia-me uma debutante. No entanto, logo me impressionou a simplicidade e afabilidade deles. Quando meu livro foi distribuído a todos os participantes, recebi elogios por ter escolhido um tema inovador e complexo. Fala-se muito da economia da China, do seu PIB, crescimento urbano, mas outros aspectos passam despercebidos: suas raízes históricas, culturais e religiosas são pouco debatidas. No meu livro, procurei entender quais foram e quais são as dificuldades encontradas pelo povo chinês diante da difusão da religião católica no seu território; como a religião sobreviveu às fases críticas da diplomacia entre o governo de Pequim e a Santa Sé; quais foram os passos dados, as ocasiões de encontro perdidas entre o cristianismo, religião universal de dois mil anos, e o Império chinês, de cinco milênios. É uma questão aberta e, por tal razão, envolvente, apaixonante. O livro está disponível no site da editora: www.funag.gov.br.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Sidney 2008 - 23° Jornada Mundial da Juventude

Concluiu-se domingo, dia 20, a 23ª Jornada Mundial da Juventude, o maior evento católico juvenil no mundo. É a segunda vez que o papa Bento XVI encontra-se com os jovens dos cinco continentes. Ele quis dar continuidade à tradição criada por seu predecessor.

João Paulo II teve a idéia de instituir as Jornadas Mundiais da Juventude durante a Missa do Domingo de Ramos de 1983, surpreendido pela grande afluência de jovens na Praça de São Pedro: cerca de 250 mil. Para o papa, as jornadas teriam o objetivo de “alimentar a fé por meio do encontro de coetâneos de diferentes países e da comunhão das respectivas experiências”. No início, a proposta do pontífice não recebeu o apoio esperado, principalmente dentro da própria igreja católica. Muitos bispos a contrastaram. Mas, na 1ª Jornada Mundial da Juventude, realizada em Roma, no ano de 1986, os “opositores” tiveram que reconhecer o sucesso da intuição de João Paulo II. Naquela jornada, eu estava entre os milhares de participantes e, apesar de não gostar muito de aglomeração de multidões, foi uma experiência inesquecível. A partir daquele ano, as Jornadas Mundiais da Juventude percorreram o mundo, alternando os encontros em Roma e fora da Itália. Buenos Aires (Argentina), 1987; Santiago de Compostela (Espanha), 1989; Czestochowa (Polônia), 1991; Denver (EUA), 1993; Manila (Filipinas), 1995; Paris (França), 1997; Toronto (Canadá), 2002; Colônia (Alemanha), 2005, foram as cidades escolhidas pelo papa João Paulo II. Em 2005, em Colônia, no seu lugar estava o novo papa Bento XVI. De novo, dentro da igreja católica, começou a se duvidar do sucesso das Jornadas Mundiais da Juventude, principalmente porque se pensava que Bento XVI, não possuindo as mesmas características midiáticas do seu predecessor, pudesse, de alguma forma, decepcionar a juventude. Também desta vez, as dúvidas logo se dissiparam. O papa Bento XVI conquistou os jovens com a inteligência aguda e penetrante de suas comunicações e, sobretudo, pela extraordinária capacidade de estabelecer um relacionamento pessoal com seus ouvintes, mesmo no meio de uma multidão. No primeiro encontro com ele, muitos jovens afirmaram: “Antes, viajávamos para ver o papa, agora viajamos para escutá-lo”. Sidney foi a primeira cidade escolhida por Bento XVI. Uma escolha à primeira vista difícil, pela distância geográfica (20 horas de avião da Itália), e pela distância da tradição religiosa. Como o próprio Bento XVI afirmou, a Austrália é um dos países mais secularizados do planeta. Os católicos representam somente cerca de 26% da população. Na véspera da Jornada Mundial da Juventude, os jornais australianos publicaram o temor da população diante da invasão dos jovens. Mas, também este ano, a Jornada Mundial da Juventude foi um sucesso. Chegando de barco, na baía de Sidney, o papa Bento XVI foi acolhido por 200 mil pessoas. O dobro - cerca de 400 mil pessoas ou até um pouco mais - participou da missa no domingo, dia 20, realizada no hipódromo de Randwick. Participaram da jornada cerca de 225 mil jovens, dos quais 125 mil da Austrália e os outros 100 mil provenientes do resto do mundo. O lema do encontro foi "Recebereis uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas” (Atos 1, 8). O papa Bento XVI inovou na comunicação com os jovens. Se, até agora, o papa comunicava-se com seu povo por meio de encíclicas, cartas apostólicas, exortações, discursos oficiais, neste encontro, o papa usou um novo meio: o SMS ou torpedo, como são conhecidas no Brasil as mensagens enviadas por celular. Todo dia, Bento XVI, assinando o torpedo com a sigla BXVI, enviava mensagens aos participantes, convidando-os a viver o lema da jornada. No primeiro dia, ele escreveu: “O Espírito Santo é o principal agente da história da salvação; deixe-o escrever também a história de sua vida - BXVI”. A cidade de Sidney, futurista e secularizada, deixou-se envolver pelo entusiasmo dos milhares de jovens e por um papa que rompe protocolos e preconceitos, surpreendendo com um carisma todo próprio que não imaginávamos que ele tivesse.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

A genialidade de Nicolas Sarkozy

No domingo passado, aconteceu em Paris o lançamento de uma nova organização internacional, inspirada no modelo da União Européia: a União pelo Mediterrâneo. Foi uma iniciativa do presidente francês, Nicolas Sarkozy, em favor da cooperação e da paz mundial. Já no dia após a sua eleição, em maio do ano passado, ele anunciou o sonho de reunir os países banhados pelo Mediterrâneo – os da União Européia, da África e do Oriente Médio - para construir um espaço de segurança, solidariedade e justiça; lugar de discussão para resolver os grandes desafios da mudança climática, do acesso à água e energia, o problema da migração, o diálogo entre as civilizações, numa região estrategicamente importante do ponto de vista político e econômico. No sul do Mediterrâneo originam-se ameaças à paz, e um fluxo continuado de imigração. Mas também é de lá a metade das importações de energia.

Desde a antiguidade, a região do Mediterrâneo foi espaço de encontro entre três continentes: a Europa, a África e a Ásia. Foi o teatro privilegiado das grandes civilizações: da civilização da Babilônia, à civilização grega, à romana e de intensas relações comerciais. Lugar de encontro, portanto, mas, também, de desencontros.

Ainda hoje, o conflito entre Israel e Palestina é uma das maiores preocupações para a estabilidade desta parte do mundo. Foi justamente a vontade de contribuir para a resolução dos conflitos e das tensões internacionais nesta área, que levou o presidente francês a propor a criação desta organização. Pelo número de chefes de estado e de governo que aderiram à iniciativa podemos deduzir que a França não é a única a desejar o restabelecimento de uma paz duradoura na região. Foram bem 43 os países que aceitaram o convite francês para participar do lançamento da primeira cúpula da União pelo Mediterrâneo. São os 27 da União Européia, junto com Argélia, Egito, Israel, Jordânia, Líbano, Marrocos, Mauritânia, Síria, Tunísia, Turquia, Albânia, Croácia, Bósnia-Erzegovina, Montenegro, Mônaco, além da participação do Presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP).

A abertura da cúpula foi premiada com dois acontecimentos históricos: o primeiro, o aperto de mão entre o presidente libanês Suleiman e o presidente da Síria, Bashar al Assad, ato este que abriu a estrada para a retomada das relações diplomáticas entre os dois países. Os dois presidentes anunciaram a abertura de suas respectivas embaixadas em Damasco e Beirute. Este avanço diplomático marcou o fim de anos de isolamento internacional do governo da Síria, acusado de ter sido o mandante do assassínio do ex-primeiro ministro libanês Hariri, morto em 2005.

Outro evento histórico, realizado com a mediação francesa, foi o encontro entre o presidente palestino Mahmoud Abbas, conhecido também com o nome de Abu Mazen, e o primeiro ministro de Israel, Ehud Olmert. Após a conclusão do encontro, no qual Israel prometeu a liberação de um grupo de presos palestinos, Olmert e Abu Mazen pronunciaram-se positivamente sobre um possível acordo de paz.

Olmert afirmou que Israel e os palestinos nunca estiveram tão próximos de um acordo de paz. De sua parte, o presidente da Autoridade Nacional Palestina sublinhou que o acordo de paz entre eles é a base fundamental para alcançar a estabilidade mundial, expressando o desejo que, com a ajuda da França, se possa chegar à paz antes do final do ano.

Com estas felizes premissas, a iniciativa de Sarkozy ganhou ainda mais força. Logicamente, os apertos de mão e as promessas não são suficientes para garantir efetivas mudanças nos conflitos. O ceticismo e a desconfiança continuam. Se pensarmos no caso de Israel e da Palestina, logo se percebe que a vontade política de seus governantes deve ser acompanhada de uma mudança radical nas próprias populações, acostumadas a alimentar o ódio e o desejo de vingança. Contudo, como afirmou Sarkozy, “o pior é não fazer nada, deixando espaço para as injustiças e exasperações dos povos”. Ocorre lutar, e lutar juntos. Iniciativas como essas, demonstram que, não obstante os conflitos e as tensões internacionais, o mundo tende à unidade.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Ingrid Betancourt - um sorriso desconcertante

No dia 2 de julho, Ingrid Betancourt, refém das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), foi finalmente libertada após 6 anos e 4 meses de cativeiro. Mérito de uma espetacular operação militar do governo da Colômbia. As imagens de sua chegada e as suas primeiras palavras emocionaram o mundo. Surpreenderam o rosto sereno, o sorriso meigo e, ao mesmo tempo, a explosão da força vital de uma mulher que conseguiu vencer uma batalha que parecia invencível. Tais imagens contrastavam com suas últimas fotos, que a retratavam doente na selva, aparentemente vencida, fechada num silêncio desesperado. Para ela e os outros 14 reféns, o dia 2 de julho representou o fim de um pesadelo. Destes 14 reféns, três são americanos, os outros são militares colombianos, reféns havia cerca de 10 anos. Um destes, que era também enfermeiro, cuidou de Ingrid durante a fase aguda de sua doença. Em meio a violências físicas e psicológicas praticadas pelos guerrilheiros, a solidariedade entre os reféns sobreviveu. No período em que ela não conseguia mais se alimentar, o soldado enfermeiro cuidou dela de uma maneira extraordinária. Ingrid contou que ele a alimentava da mesma forma que uma mãe faria com a própria criancinha, convencendo-a a comer com a seguinte frase: “Uma colher para Melanie, uma para Lorenzo...”. Melanie e Lorenzo são os filhos de Ingrid, hoje adultos, e que, na época de seu seqüestro, estavam com 16 e 13 anos respectivamente. Seus filhos conseguiram convencer a diplomacia francesa a pressionar o governo colombiano em favor da libertação de Ingrid. Nos últimos anos encontraram um forte aliado em Nicolas Sarkozy. Graças ao apoio dos filhos e da mãe de Ingrid, que todos os dias lhe enviava mensagens via rádio, encorajando-a a não desistir, Ingrid conseguiu lutar momento após momento contra a tentação de desistir, de se deixar morrer. “A morte é a companheira mais fiel de um refém, a tentação do suicídio é cotidiana”, afirmou ela nestes primeiros dias. A vida recomeçou e pelo, que se percebe de suas primeiras entrevistas, recomeçou para valer. Por enquanto, seu primeiro objetivo é recuperar o tempo perdido com os filhos, descansar com eles e com sua família, viajar pela França, onde ela viveu por mais de dez anos. Na Itália, será recebida pelo papa Bento XVI. Ingrid afirmou que sua libertação é um milagre de Nossa Senhora, e agradeceu-a na Capela da Virgem Milagrosa, em Paris. Além do apoio de seus familiares, ela afirmou ter conseguido sobreviver graças à fé, acreditando sempre no amor de Deus. A impressão deixada por uma mulher que é frágil e forte ao mesmo tempo é a de uma heroína, como Nelson Mandela, ao feminino. Ela declarou que após o descanso necessário para revigorar as forças físicas e psíquicas, seu objetivo é voltar à política para servir ao povo colombiano. Quer retomar sua luta política, interrompida com seu seqüestro em novembro de 2002, quando ela disputava a presidência da República da Colômbia. Disse que lutará pela libertação dos reféns que ficaram nas mãos dos guerrilheiros.

Durante os anos de seu cativeiro, a Colômbia alcançou maior estabilidade e segurança. O governo de Álvaro Uribe, baseado na linha dura contra a guerrilha das Farc, ganhou a aprovação de 80% da população colombiana. Segundo analistas políticos colombianos, as Farc estão perdendo força. Fontes oficiais relatam que mais de 9000 combatentes das Farc abandonaram a guerrilha nos últimos anos. A morte de seus chefes mais importantes e a perda de reféns estrategicamente relevantes - como Ingrid Betancourt e os três americanos libertados com ela – são sinais importantes de enfraquecimento dos guerrilheiros. Mas a luta deve continuar e Ingrid quer retomar seu lugar no cenário político colombiano. Ela conquistou o carinho e o apoio do povo colombiano. Aliás, o mundo inteiro parece ter exultado à notícia de sua libertação. A imagem desconcertante do sorriso gracioso de Ingrid Betancourt após tantos anos no cativeiro parece ter penetrado no coração do mundo.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Nelson Mandela - a dignidade acima de tudo

Na sexta-feira passada, dezenas de artistas internacionais homenagearam Nelson Mandela em um show no Hyde Park, em Londres. Mais de 50 mil pessoas participaram. Ao receber os parabéns pelo seu nonagésimo aniversário, o líder sul-africano comoveu-se.

Certamente, diante da homenagem de tantas pessoas, Mandela deve ter relembrado sua vida e as dificuldades pelas quais passou nestes 90 anos.

Nelson Mandela nasceu em 1918, numa família nobre de sua tribo. Quando ficou órfão do pai, aos 12 anos, foi entregue aos cuidados do chefe da tribo. Aos 22 anos, para livrar-se de um casamento combinado, fugiu de casa mudando-se para Johannesburg. Formou-se em direito. A partir daí, sua história pessoal começa a entrelaçar-se com a tumultuosa história de seu país: a África do Sul. Como todas as nações africanas, a África do Sul foi sujeita à colonização européia: os holandeses primeiro, substituídos, depois, pelo Reino Unido. Em 1911, a minoria branca, constituída por descendentes de britânicos e Afrikaneers (descendentes dos imigrantes holandeses), promulgou uma lei conhecida como “Ato das Terras Nativas”, que consolidou seu poder sobre a população negra. Esta lei obrigava os negros a viverem em reservas especiais, cuja extensão ocupava somente 13% do território. O resto das terras (87%) seria ocupado pela minoria branca. Era a semente do Apartheid (regime de segregação racial da minoria branca em relação aos negros) que se oficializou em 1948, com a vitória do Partido Nacionalista. O regime do Apartheid negava à população negra o direito de participar da vida política (nas eleições de 1948, votaram somente os brancos). Os negros ficaram excluídos do acesso à propriedade das terras, além de serem obrigados a viver em regiões residenciais segregadas. Casamentos entre raças diferentes também eram proibidos.

Nelson Mandela, já em 1942, uniu-se ao partido de oposição, o Congresso Nacional Africano (CNA), para combater pelos direitos de seu povo. Junto com um amigo advogado, começou a dar assistência legal gratuita ou a baixo custo aos negros que não podiam pagar um advogado. Os primeiros anos de sua luta política foram inspirados nos princípios da não-violência do indiano Gandhi. Contudo, diante do massacre de Sharpeville, em 21 de março de 1960 – quando a polícia sul-africana matou 69 participantes de uma manifestação pacifista, e feriu outras 180 pessoas –, Mandela decidiu aderir à luta armada. Foi nomeado comandante da força paramilitar da oposição. Liderou ações de sabotagem contra as forças governamentais que baniram o partido de oposição, CNA, e os grupos contra o apartheid.

Em 1962, Nelson Mandela foi preso por sabotagem e conspiração. Em 1964, foi condenado à prisão perpetua. Na década de 1970, o Partido Nacionalista recrudesceu as políticas anti-raciais. A população negra foi separada, classificada em grupos étnicos e confinada em territórios distantes das cidades, os chamados bantustões. Desta forma, o governo tentava afastar os negros da educação ocidental, garantindo mão-de-obra para as indústrias dos brancos. Da prisão, Nelson Mandela continuou encorajando as forças de oposição. Ele tornou-se símbolo da luta contra o Apartheid, não somente na África do Sul, mas no mundo todo. Mantendo sua integridade moral, em 1970 recusou a revisão da pena e, 15 anos depois, não aceitou a liberdade condicional, pois seria obrigado a renunciar à sua luta contra a segregação racial.

Em 1989, a eleição de Frederik de Klerk marcou o início de algumas mudanças no país. De Klerk mostrou-se sensível às pressões internacionais que pediam insistentemente a libertação de Nelson Mandela. Em 1990, o presidente assinou a revogação das leis anti-raciais e a autorizou a libertação de Nelson Mandela. Quatro anos depois, em 1994, foram realizadas as primeiras eleições multirraciais da história da África do Sul. Nelson Mandela foi eleito presidente, o primeiro presidente negro do país.

Após décadas de isolamento diplomático internacional, a África do Sul tornou-se um dos países estrategicamente mais importantes do cenário internacional. Graças, também, ao trabalho e exemplo de um homem chamado Nelson Mandela.